domingo, 10 de novembro de 2019

Antonio Prata, matador de jagunço matador

Surpresa: os jagunços não ouvem João Gilberto. Surpresa: os jagunços não leram Montesquieu. Surpresa: os jagunços desprezam Fernanda Montenegro. Surpresa: os jagunços vestem camisas falsificadas do Palmeiras. Surpresa: os jagunços preferem SBT. Surpresa: os jagunços comem Miojo. Surpresa: os jagunços são fãs do Rambo. Surpresa: os jagunços moram no condomínio dos jagunços. Surpresa: os jagunços andam armados. Surpresa: os jagunços são jagunços.
Paulo Guedes passou toda a campanha presidencial indo de Casa Grande a Casa Grande, de capitania hereditária a capitania hereditária, de engenho a engenho, dizendo: calma, não prestem atenção no que ele fala, sabe como é, coisa de jagunço, mas eu mando nele. A gente usa o bando dele pra acabar com o PT e depois de eleito ele vai calçar botina e parar de cuspir no chão e saberá se colocar no seu lugar, como os jagunços sempre souberam. Ele vai entender quem manda aqui. Vai respeitar a Globo e a Folha e a USP e o Inpe e o Leblon e os Jardins e até a Constituição. "Ele já é um outro animal", disse o futuro ministro —e a Casa Grande acreditou.
Acontece que o mundo mudou, parceiro. As mulheres se empoderaram. Os negros se empoderaram. Os LGBT se empoderaram. Por que os jagunços não se empoderariam? Jagunço também é filho de Deus. Não o Deus do Papa comunista, mas o Deus dos jagunços, do Edir Macedo, do Marco Feliciano, o Deus de Mateus, 10:34: "Não penseis que vim trazer paz à terra; não vim trazer a paz, mas a espada" e Mateus, 12:30: "Quem não é por mim é contra mim; e quem comigo não ajunta espalha". Aos amigos, gato-Net, aos inimigos, bala.
Oh, mas o Brasil era um país tão terno! Era o país da democracia racial, o país sem guerras onde o mar, quando quebrava na praia, era bonito, era bonito. Mentira. Enquanto o mar quebrava na praia os jagunços faziam o trabalho sujo. Raposo Tavares e João Ramalho estavam metendo os pés descalços na lama muito além do Tratado de Tordesilhas para trazer índio pra moer no engenho. (Um país cujo RH fundou-se, literalmente, no "head-hunting", iria terminar como?).
Séculos depois, jagunços fardados foram exibir as cabeças decepadas dos jagunços desgarrados do bando do Lampião. Jagunços fardados derrotaram o bando do Antonio Conselheiro. E quando milhares da Casa Grande foram pro pau de arara, outro dia mesmo, os militares disseram que não sabiam de nada, desvios acontecem, coisa dos jagunços dos porões.
Que injustiça: nenhum ditador, entre 1964 e 1984, foi à TV comemorar a tortura, os extermínios. Era diferente o ethos da nossa violência. Ela era escamoteada. O chicote comia solto lá longe enquanto, na sala, os bacharéis discutiam o espírito das leis ouvindo polca, Nara Leão ou iê-iê-iê.
Chega de hipocrisia. Há quinhentos anos que, a mando dos donos do poder, os jagunços matam os Lampiões, os Conselheiros, os Chico Mendes, as Mareielles e protegem o asfalto da ameaça dos morros, seja em Belo Monte ou no Morumbi: agora eles querem crédito, querem reconhecimento.
Por que não? Eles não são só filhos de Deus —veja que terrível ironia—, eles são filhos da Revolução Francesa, são fruto da democracia, a arma na cintura é seu black power, a placa quebrada da Marielle é sua rainbow flag, emoldurada na parede, e enquanto MC Reaça toca alto na Bastilha do Planalto, os bacharéis Paulo Guedes, Sergio Moro e Ricardo Salles seguem tentando tranquilizar a Casa Grande, sem perceber —ou sabendo muito bem?— que não passam de jagunços dos jagunços.

sábado, 11 de maio de 2019

Nirlando Beirão, o gênio do jornalismo, está dizendo adeus

Já sabia, mas agora é público que Nirlando Beirão convive com a ELA, outra maldita, a tal Esclorese Lateral Amiotrófica, doença que começou a ser relatada sei lá quando. Nirlando vai morrer logo, ou tomara que esse logo espere a medicina e seus laboratórios encontrarem uma saída. Para que ele morra mais tarde, como nós vamos morrer, uns mais cedo, os mais queridos mais tarde.

Mas ele não merece morrer no auge de sua capacidade intelectual, aos poucos 71.

ELA é uma doença fatal, viu? Milhões de pessoas convivem com a ELA por meses, anos ou muitos anos. Alguns sortudos não morrem dela, mas morrem com ela.

O atacante Washington, parceiro do Assis no Atlético Paranaense e imortalizado no Fluminense pelo tri de antanho, morreu disso, e, pior, em instante de ataque da doença quando não havia socorro. Poderia ter escapado e vivido mais alguns meses, anos, quem sabe?

Mas não morreu de tiro, desgosto.

Nirlando está morrendo, e não será de tiro, desgosto, talvez?

Não morrerá com três tiros nas costas disparados por um surfista corneado, como espicaçava o sonho de morte de Millôr Fernandes.

Nirlando está morrendo, é isso.

Quero do coração que ele viva mais, mais.

A medicina ocidental não cura muitas doenças, e não é só o câncer.

Não cura, como queremos, a ELA.

Coisas da vida.

Repórter do Estadão em Curitiba, fui colaborador da coluna do Nirlando no Estadão, anos 80, chamada "Galeria". Conheci o chefe numa salinha no jornal em SP e com ele conversei rapidinho. Simpático, calmo, parceiro.

Mas agora: nunca mais um Nirlando Beirão, que fez história em jornais e revistas paulistas, ele mineiro de texto absolutamente elegante e incomparável.

Nirlando é diretor de redação da "Brasileiros", junto com outro incomparável, o Hélio Campos Mello, fotógrafo que escreve como poucos. E é redator-chefe da "Carta Capital", brigando com Mino Carta, veja só.

Nirlando Beirão é um craque da reportagem, da edição e um gênio do texto.

Já faz muita falta.

O jornalismo e quem preza a elegância da escrita e da convivência agradecem.

Outro Nirlando Beirão, nunca mais.

Fica mais um pouco, professor.