sexta-feira, 22 de maio de 2009

Uma crônica de Francisco*

O ano era de 1.993, nas ruas de Conquista fervilhavam milhares de pessoas pobres oriundas dos mais diversos cantos desta Bahia bem como, de outros estados do nordeste em busca de trabalho temporário na colheita do café. Eram comuns as cenas de pessoas sentadas nas calçadas com crianças de colo e, com a mão estendida pedindo uma esmola a qualquer um cristão que passasse, por exemplo, na calçada da COFET da esquina da Monsenhor Olímpio com o Beco de acesso à Avenida Lauro de Freitas; era uma cena na paisagem conquistense que a cada dia se tornava mais comum, como, igualmente comum eram os pedintes que não nos davam folga em nossas residências, era uma calamidade pública. E pensar, que os que eram responsáveis por essa tragédia no país, hoje são mortalmente contra o atual governo por promover uma distribuição de renda para os mais pobres...Certa manhã do mês de julho, daquele mesmo ano, ao me levantar e após as minhas abluções, percebi que à minha mesa faltavam o vinho, o queijo assim como, o indispensável salame tão necessários ao meu desjejum. Então resolvi sair e dirigir-me a um supermercado nas proximidades da minha residência e comprar um bom vinho assim como, os necessários acompanhamentos. O vinho que à época eu consumia, assim como os colegas do CESEC, provinha da Alemanha e Itália, era importado por uma iniciativa do colega Dário Ciacci (in memorian), que, comprado em grande quantidade barateavam os custos e, por essa razão, todos nós que fazíamos parte “desse clube do vinho” éramos beneficiados com uma aquisição em conta.Ao chegar ao supermercado – aqui não declinarei o nome – percebi uma movimentação estranha para aquela manhã tão fria daquele mês de julho. Tratava-se de um caso de furto. Para registro das devidas ocorrências, ali já se encontrava uma viatura da Polícia Militar, que fora acionada pelo proprietário do supermercado. Ao terceiro sargento que ali se fazia presente junto com outros dois colegas, eu perguntei, pronunciando o seu nome – tratava-se de um colega de infância, que também havia sido meu colega no Tiro de Guerra, sendo inclusive soldado (atirador) no meu pelotão (eu era Cabo) – o que houve? Que movimentação é essa? Ela me respondeu: aquele ladrão estava roubando o supermercado e fomos acionados para que seja efetuada a prisão. Cadê o ladrão? Perguntei. Está ali, veja lá!É, realmente, lá estava num canto do supermercado tremendo como um ratinho, acuado em um canto pelo malvado gato “Mefistófeles”. Ali estava o “Facínora”. Eu não pude compreender se o pobre e desgraçado tremia tanto, se era por causa do frio que ainda fazia apesar de já ser por volta de 09h10m, ou se era por causa dos olhares inquisidores dos curiosos tanto mais que dos policiais que ali se encontravam e, ainda esperavam por reforços (pasmem). Perguntei ainda ao sargento meu amigo: o que foi que ele roubou? Veja ali em cima do balcão, me respondeu. Dirigi-me ao balcão. Em cima do mesmo estavam: uma chuquinha; um bico (consolo); um pacotinho de fraldas; um saco de leite em pó; um engrossante do tipo arrozina, uma pequena caçarola... E, acho que era só.Voltei ao amigo e sargento e comentei – neste momento, acabara de chegar o reforço (eram mais duas viaturas) – por que vai prender o carinha, se já foram recuperadas as mercadorias? – Ah! O dono do supermercado disse que ele está entrando e saindo deste local desde as dez para as oito (07h50m), e que provavelmente deve ter mais coisas além destas. Ora, amigo! Você acredita nisso? Eu sinceramente não acredito que sejam mais mercadorias além destas aí em cima do balcão. Nisso, os valentosos do reforço foram segurando o desvalido com uma chave de braço. O sargento meu amigo, olhou-me com um olhar traduzindo-se em pedido de clemência. Gritei: Alto lá, amigos! Deixe o infeliz! Eu pagarei a conta dele. Não vêem que se trata de um crime de menor potencial ofensivo, e que, pode ser considerado famélico? Aí, o sargento encaminhou-se até os valorosos e valentosos colegas, confabularam um pouco e voltaram até a minha pessoa e disseram: tudo bem, mas, o que acontecer depois com um ladrão desses à solta por aí será de sua responsabilidade. Voltaram-se para o dono do supermercado e perguntaram se ele estava satisfeito com o desfecho. Ele meio que desapontado disse que sim. Acredito que ele na verdade queria que fosse dado o tratamento ao desvalido tal como no livro de Victor Hugo “Os Miseráveis” onde Jean Valjean acabou passando dezenove anos na prisão por ter roubado um pão para matar a sua fome.Quando entrava na viatura o meu amigo me chamou, eu fui até ele, e esse me disse: Chico, eu divido com você no que der as despesas. Eu respondi com uma ponta de emoção: amigo, só em você declinar esta sua vontade, considere-se paga por você toda a conta. Não precisa, deixe para outra oportunidade em que eu não possa estar presente, adeus!Voltei ao supermercado, chamei o “Facínora”, digo: o desafortunado e o convidei a entrar para que pudesse dessa forma comprar o que precisava. Eu posso? Respondi que sim. Fizemos uma compra basicamente para atender às necessidades de um recém nascido.Saímos dali, e, embaixo do viaduto estavam todos os que compunham aquela família. Comigo, também foram duas senhoras que se solidarizaram com o meu ato, e puderam também ajudar levando roupas para todos, sem contudo, desviarem-se do foco: o recém nascido. Foram levadas roupinhas de pagão, e para as idades que se seguiriam a partir daí.Chegando a minha casa dei um telefonema para Cezarina (Czarina é assistente social), contei-lhe o ocorrido, e esta socorreu com uma ajuda preciosa: conseguiu um lugar em um abrigo para pobres no Alto da Rua das Pedrinhas, onde, para lá foram os nossos bóias-frias que não conseguiram um só dia de colheita de café. E, para experimentar da hospitalidade conquistense tiveram que passar por uma manhã de cão. A nossa cidade alardeia que recebe bem os que chegam. Será? Com certeza, dão testemunhos dessa hospitalidade aqueles que pouco ou nada precisam dos conquistenses. A vida do chegante ficará melhor em Conquista se na bagagem trouxer pedigree, dinheiro e títulos! Não se demorará a ser agraciado com um honroso “título de cidadão conquistense”. Ah! E o vinho e os seus acompanhamentos, para o meu desjejum? Bom, no meu manual de connaisseur, esta mistura que aquela manhã acabara de me propor, ficaria intragável o meu fino vinho. Como diz o meu amigo Paulo Pires: fica para a próxima, e até a próxima!

Francisco Silva Filho, baiano de Vitória da Conquista, é advogado e vive em Curitiba.

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