sábado, 4 de julho de 2009

Carta aos brasileiros

Peguei no Google a Carta, que havia lido ainda jovem.
Goffredo a assina, mas o texto vem de muitas mãos, de milhares, milhões de mãos.
Importante lê-la, pois histórica.
A ela
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CARTA AOS BRASILEIROS

Das Arcadas do Largo de São Francisco, do “Território ­Livre” da Academia de Direito de São Paulo, dirigimos, a todos os brasi­leiros esta Mensagem de Aniversário, que é a Proclamaçõo de Princípios de nossas convicções políticas.

Na qualidade de herdeiros do patrimônio recebido de nossos maiores, ao ensejo do Sesquicentenário dos Cursos Jurídicos no Brasil, queremos dar o testemunho, para as gerações futuras, de que os ideais do Estado de Direito, apesar da conjuntura da hora presente, vivem e atuam, hoje como ontem, no espírito vigilante da nacionalidade.

Queremos dizer, sobretudo aos moços, que nós aqui estamos e aqui permanecemos, decididos, como sempre, a lutar pelos Direi­tos Humanos, contra a opressão de todas as ditaduras.

Nossa fidelidade de hoje aos princípios basilares da Democracia é a mesma que sempre existiu à sombra das Arcadas: fidelidade indefectível e operante, que escreveu as Páginas da Liberdade, na História do Brasil.

Estamos certos de que esta Carta exprime o pensamento ­comum de nossa imensa e poderosa Família – da Família formada, durante um século e meio, na Academia do Largo de São Francisco, na Faculdade de Direito de Olinda e Recife, e nas ­outras grandes Faculdades de Direito do Brasil – Família indestrutível, espalhada por todos os rincões da Pátria, e da qual já saíram, na vigência de Constituições democráticas, dezessete Presidentes da República.



1. O Legal e o Legítimo

Deixemos de lado o que não é essencial.

O que aqui diremos não tem a pretensão de constituir novidade. Para evitar interpretações errôneas, nem sequer nos vamos referir a certas conquistas sociais do mundo moderno. Deliberada­mente, nada mais diremos do que aquilo que, de uma ou outra maneira, vem sendo ensinado, ano após ano, nos cursos normais das Faculdades de Direito. E não transporemos os limites do ­campo científico de nossa competência.

Partimos de uma distinção necessária. Distinguimos entre o legal e o legítimo.

Toda lei é legal, obviamente. Mas nem toda lei é legítima. Sustentamos que só é legítima a lei provinda de fonte legítima.

Das leis, a fonte legítima primária é a comunidade a que as leis dizem respeito; é o Povo ao qual elas interessam – comunidade e Povo em cujo seio as idéias das leis germinam, como produtos naturais das exigências da vida.

Os dados sociais, as contingências históricas da coletividade, as contradições entre o dever teórico e o comportamento efetivo, a média das aspirações e das repulsas populares, os anseios domi­nantes do Povo, tudo isto, em conjunto, é que constitui o manancial de onde brotam normas espontâneas de convivência, originais intentos de ordenação, às vezes usos e costumes, que irão inspirar a obra do legislador.

Das forças mesológicas, dos fatores reais, imperantes na comu­nidade, é que emerge a alma dos mandamentos que o legislador, na forja parlamentar, modela em termos de leis legítimas.

A fonte legítima secundária das leis é o próprio legislador, ou o conjunto dos legisladores de que se compõem os órgãos legislativos do Estado. Mas o legislador e os órgãos legislativos somente são fontes legítimas das leis enquanto forem representantes autorizados da comunidade, vozes oficiais do Povo, que é a fonte primária das leis.

O único outorgante de poderes legislativos é o Povo. Somente o Povo tem competência para escolher seus representantes. Somente os Representantes do Povo são legisladores legítimos.

A escolha legítima dos legisladores só se pode fazer pelos processos fixados pelo Povo em sua Lei Magna, por ele também elaborada, e que é a Constituição.

Consideramos ilegítimas as leis não nascidas do seio da cole­tividade, não confeccionadas em conformidade com os processos prefixados pelos Representantes do Povo, mas baixadas de cima, como carga descida na ponta de um cabo.

Afirmamos, portanto, que há uma ordem jurídica legítima e uma ordem jurídica ilegítima. A ordem imposta, vinda de cima para baixo, é ordem ilegítima. Ela é ilegítima porque, antes de mais nada, ilegítima é a sua origem. Somente é legítima a ordem que nasce, que tem raízes, que brota da própria vida, no seio do Povo.

Imposta, a ordem é violência. Às vezes, em certos momentos de convulsão social, apresenta-se como remédio de urgência. Mas, em regra, é medicação que não pode ser usada por tempo dilatado, porque acaba acarretando males piores do que os causados pela doença.



2. A Ordem, o Poder e a Força

Estamos convictos de que há um senso leviano e um senso grave da ordem.

O senso leviano da ordem é o dos que se supõem imbuídos da ciência do bem e do mal, conhecedores predestinados do que deve e do que não deve ser feito, proprietários absolutos da verdade, ditadores soberanos do comportamento humano.

O senso grave da ordem é o dos que abraçam os projetos resultantes do entrechoque livre das opiniões, das lutas fecundas entre idéias e tendências, nas quais nenhuma autoridade se sobrepõe às Leis e ao Direito.

Ninguém se iluda. A ordem social justa não pode ser gerada pela pretensão de governantes prepotentes. A fonte genuína da ordem não é a Força, mas o Poder.

O Poder, a que nos referimos, não é o Poder da Força, mas um Poder de persuasão.

Sustentamos que o Poder Legítimo é o que se funda naquele senso grave da ordem, naqueles projetos de organização social, nascidos do embate das convicções e que passam a preponderar na coletividade e a ser aceitos pela consciência comum do Povo, como os melhores.

O Governo, com o senso grave da ordem, é um Governo cheio de Poder. Sua legitimidade reside no prestígio popular de quase todos os seus projetos. Sua autoridade se apóia no consenso da maioria.

Nisto é que está a razão da obediência voluntária do Povo aos Governos legítimos.

Denunciamos como ilegítimo todo Governo fundado na ­Força. Legítimo somente o é o Governo que for órgão do Poder.

Ilegítimo é o Governo cheio de Força e vazio de Poder.

A nós nos repugna a teoria de que o Poder não é mais do que a Força. Para nossa consciência jurídica, o Poder é produto do consenso popular e a Força um mero instrumento do Governo.

Não negamos a utilidade de tal instrumento. Mas o que afirmamos é que a Força é somente útil na qualidade de meio, para assegurar o respeito pela ordem jurídica vigente e não para subvertê-la ou para impor reformas na Constituição.

A Força é um meio de que se utiliza o Governo fiel aos projetos do Povo. Desgraçadamente, também a utiliza o Governo ­infiel. O Governo fiel a utiliza a serviço do Poder. O Governo infiel, a serviço do arbítrio.

Reconhecemos que o Chefe do Governo é o mais alto funcionário nos quadros administrativos da Nação. Mas negamos que ele seja o mais alto Poder de um País. Acima dele, reina o Poder de uma Idéia: reina o Poder das convicções que inspiram as
linhas mestras da Política nacional. Reina o senso grave da Ordem, que se acha definido na Constituição.



3. A Soberania da Constituição

Proclamamos a soberania da Constituição.

Sustentamos que nenhum ato legislativo pode ser tido como lei superior à Constituição.

Uma lei só é válida se a sua elaboração obedeceu aos preceitos constitucionais, que regulam o processo legislativo. Ela só é válida se, em seu mérito, suas disposições não se opõem ao pensa­mento da Constituição.

Aliás, uma lei inconstitucional é lei precária e efêmera, ­porque só é lei enquanto sua inconstitucionalidade não for declarada pelo Poder Judiciário. Ela não é propriamente lei, mas apenas uma camuflagem da lei. No conflito entre ela e a Constituição, o que cumpre, propriamente, não é fazer prevalecer a Constituição, mas é dar pela nulidade da lei inconstitucional. Embora não seja razoável considerá-la inexistente, uma vez que a lei existe como objeto do julgamento que a declara inconstitucional, ela não tem, em verdade, a dignidade de uma verdadeira lei.

Queremos consignar aqui um simples mas fundamental princí­pio. Da conformidade de todas as leis com o espírito e a letra da Constituição dependem a unidade e coerência do sistema jurídico nacional.

Observamos que a Constituição também é uma lei. Mas é a Lei Magna. O que, antes de tudo, a distingue nitidamente das outras leis é que sua elaboração e seu mérito não se submetem a disposições de nenhuma lei superior a ela. Aliás, não podemos admitir como legítima lei nenhuma que lhe seja superior. Entretanto, sendo lei, a Constituição há de ter, também, sua fonte legítima.

Afirmamos que a fonte legítima da Constituição é o Povo.



4. O Poder Constituinte

Costuma-se dizer que a Constituição é obra do Poder. Sim, a Constituição é obra do Poder Constituinte. Mas o que se há de acrescentar, imediatamente, é que o Poder Constituinte pertence ao Povo, e ao Povo somente.

Ao Povo é que compete tomar a decisão política fundamental, que irá determinar os lineamentos da paisagem jurídica em que deseja viver.

Assim como a validade das leis depende de sua conformação com os preceitos da Constituição, a legitimidade da Constituição se avalia pela sua adequação às realidades sócioculturais da comu­nidade para a qual ela é feita.

Disto é que decorre a competência da própria comunidade para decidir sobre o seu regime político; sobre a estrutura de seu Governo e os campos de competência dos órgãos principais de que o Governo se compõe; sobre os processos de designação de seus governantes e legisladores.

Disto, também, é que decorre a competência do Povo para fazer a Declaração dos Direitos Humanos fundamentais, assim como para instituir os meios que os assegurem.

Em conseqüência, sustentamos que somente o Povo, por meio de seus Representantes, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte, ou por meio de uma Revolução vitoriosa, tem competência para elaborar a Constituição; que somente o Povo tem compe­tência para substituir a Constituição vigente por outra, nos casos em que isto se faz necessário.

Sustentamos, igualmente, que só o Povo, por meio de seus Representantes no Parlamento Nacional, tem competência para emendar a Constituição.

E sustentamos, ainda, que as emendas na Constituição não se podem fazer como se fazem as alterações na legislação ordinária. Na Constituição, as emendas somente se efetuam, quando apresentadas, processadas e aprovadas em conformidade com preceitos especiais, que a própria Constituição há de enunciar, preceitos estes que têm por fim conferir à Lei Magna do Povo uma estabilidade maior do que a das outras leis.

Declaramos ilegítima a Constituição outorgada por autoridade que não seja a Assembléia Nacional Constituinte, com a única exceção daquela que é imediatamente imposta por meio de uma Revolução vitoriosa, realizada com a direta participação do Povo.

Declaramos ilegítimas as emendas na Constituição que não forem feitas pelo Parlamento, com obediência, no encami­nhamento, na sua votação e promulgação, a todas as formalidades do rito, que a própria Carta Magna prefixa, em disposições expressas.

Não nos podemos furtar ao dever de advertir que o exercício do Poder Constituinte, por autoridade que não seja o Povo, configura, em qualquer Estado democrático, a prática de usurpação de poder político.

Negamos peremptoriamente a possibilidade de coexistência, num mesmo País, de duas ordens constitucionais legítimas, embo­ra diferentes uma da outra. Se uma ordem é legítima, por ser obra da Assembléia Constituinte do Povo, nenhuma outra ordem, provinda de outra autoridade, pode ser legítima.

Se, ao Poder Executivo fosse facultado reformar a Constituição, ou submetê-la a uma legislação discricionária, a Constituição perderia, precisamente, seu caráter constitucional e passaria a ser um farrapo de papel.

A um farrapo de papel se reduziria o documento solene, em que a Nação delimita a competência dos órgãos do Governo, para resguardar, zelosamente, de intromissões cerceadoras dos poderes públicos, o campo de atuação da liberdade humana.



5. O Estado de Direito e o Estado de Fato

Proclamamos que o Estado legítimo é o Estado de Direito, e que o Estado de Direito é o Estado Constitucional.

O Estado de Direito é o Estado que se submete ao princípio de que Governos e governantes devem obediência à ­Constituição.

Bem simples é este princípio, mas luminoso, porque se ergue, como barreira providencial, contra o arbítrio de vetustos e reniten­tes absolutismos. A ele as instituições políticas das Nações somente chegaram após um longo e acidentado percurso na Histó­ria da Civilização. Sem exagero, pode dizer-se que a consagração desse princípio representa uma das mais altas conquistas da cultura, na área da Política e da Ciência do Estado.

O Estado de Direito se caracteriza por três notas essenciais, a saber: por ser obediente ao Direito; por ser guardião dos Direitos; e por ser aberto para as conquistas da cultura jurídica.

É obediente ao Direito, porque suas funções são as que a Constituição lhe atribui, e porque, ao exercê-las, o Governo não ultrapassa os limites de sua competência.

É guardião dos Direitos, porque o Estado de Direito é o Estado-Meio, organizado para servir o ser humano, ou seja, para assegurar o exercício das liberdades e dos direitos subjetivos das ­pessoas.

E é aberto para as conquistas da cultura jurídica, porque o Estado de Direito é uma democracia, caracterizado pelo regime de representação popular nos órgãos legislativos e, portanto, é um Estado sensível às necessidades de incorporar à legislação as normas tendentes a realizar o ideal de uma Justiça cada vez mais perfeita.

Os outros Estados, os Estados não constitucionais, são os Esta­dos cujo Poder Executivo usurpa o Poder Constituinte. São os Estados cujos chefes tendem a se julgar onipotentes e oniscientes, e que acabam por não respeitar fronteiras para sua competência. São os Estados cujo Governo não tolera crítica e não permite contestação. São os Estados-Fim, com Governos obcecados por sua própria segurança, permanentemente preocupados com sua sobrevivência e continuidade. São Estados opressores, que muitas vezes se caracterizam por seus sistemas de repressão, erguidos contra as livres manifestações da cultura e contra o emprego normal dos meios de defesa dos direitos da personalidade.

Esses Estados se chamam Estados de Fato. Os otimistas lhes dão o nome de Estados de Exceção. Na verdade, são Estados Autoritários, que facilmente descambam para a Ditadura.

Ilegítimos, evidentemente, são tais Estados, porque seu ­Poder Executivo viola o princípio soberano da obediência dos Governos à Constituição e às leis.

Ilegítimos, em verdade, porque seus Governos não têm ­Poder, não têm o Poder Legítimo, que definimos no início desta Carta.

Destituídos de Poder Legítimo, os Estados de Fato duram enquanto puderem contar com o apoio de suas forças armadas.

Sustentamos que os Estados de Fato, ou Estados de Exceção, são sistemas subversivos, inimigos da ordem legítima, promotores da violência contra Direitos Subjetivos, porque são Estados contrários ao Estado Constitucional, que é o Estado de Direito, o Estado da Ordem Jurídica.

Nos países adiantados, em que a cultura política já organizou o Estado de Direito, a insólita implantação do Estado de Fato ou de Exceção – do Estado em que o Presidente da República volta a ser o monarca lege solutus – constitui um violento retrocesso no caminho da cultura.

Uma vez reimplantado o Estado de Fato, a Força torna a governar, destronando o Poder. Então, bens supremos do espírito humano, somente alcançados após árdua caminhada da inteligência, em séculos de História, são simplesmente ignorados. Os valores mais altos da Justiça, os direitos mais sagrados dos homens, os processos mais elementares de defesa do que é de cada um, são vilipendia­dos, ridicularizados e até ignorados, como se nunca tivessem ­existido.

O que os Estados de Fato, Estados Policiais, Estados de Exce­ção, Sistemas de Força apregoam é que há Direitos que devem ser suprimidos ou cerceados, para tornar possível a consecução dos ideais desses próprios Estados e Sistemas.

Por exemplo, em lugar dos Direitos Humanos, a que se refere a Declaração Universal das Nações Unidas, aprovada em 1948; em lugar do habeas corpus; em lugar do direito dos cidadãos de eleger seus governantes, esses Estados e Sistemas colocam, freqüentemente, o que chamam de Segurança Nacional e Desenvolvimento Econômico.

Com as tenebrosas experiências dos Estados Totalitários euro­­peus, nos quais o lema é, e sempre foi, “Segurança e Desenvolvimento”, aprendemos uma dura lição. Aprendemos que a Dita­dura é o regime, por excelência, da Segurança Nacional e do Desenvolvimento Econômico. O Nazismo, por exemplo, tinha por meta o binômio Segurança e Desenvolvimento. Nele ainda se inspira a ditadura soviética.

Aprendemos definitivamente que, fora do Estado de Direito, o referido binômio pode não passar de uma cilada. Fora do Estado de Direito, a Segurança, com seus órgãos de terror, é o caminho da tortura e do aviltamento humano; e o Desenvolvimento, com o malabarismo de seus cálculos, a preparação para o descalabro econômico, para a miséria e a ruína.

Não nos deixaremos seduzir pelo canto das sereias de ­quaisquer Estados de Fato, que apregoam a necessidade de Segurança e Desenvolvimento, com o objetivo de conferir legitimidade a seus atos de Força, violadores freqüentes da Ordem Constitucional.

Afirmamos que o binômio Segurança e Desenvolvimento não tem o condão de transformar uma Ditadura numa Democracia, um Estado de Fato num Estado de Direito.

Declaramos falsa a vulgar afirmação de que o Estado de Direi­to e a Democracia são “a sobremesa do desenvolvimento econômico”. O que temos verificado, com freqüência, é que desenvolvimentos econômicos se fazem nas mais hediondas ditaduras.

Nenhum País deve esperar por seu desenvolvimento econômico, para depois implantar o Estado de Direito. Advertimos que os Sistemas, nos Estados de Fato, ficarão permanentemente à espe­ra de um maior desenvolvimento econômico, para nunca implantar o Estado de Direito.

Proclamamos que o Estado de Direito é sempre primeiro, porque primeiro estão os direitos e a segurança da pessoa humana. Nenhuma idéia de Segurança Nacional e de Desenvolvimento Econômico prepondera sobre a idéia de que o Estado existe para servir o homem.

Estamos convictos de que a segurança dos direitos da pessoa humana é a primeira providência para garantir o verdadeiro ­desenvolvimento de uma Nação.

Nós queremos segurança e desenvolvimento. Mas queremos segurança e desenvolvimento dentro do Estado de Direito.

Em meio da treva cultural dos Estados de Fato, a chama acesa da consciência jurídica não cessa de reconhecer que não existem, para Estado nenhum, ideais mais altos do que os da Liberdade e da Justiça.



6. A Sociedade Civil e o Governo

O que dá sentido ao desenvolvimento nacional, o que confere legitimidade às reformas sociais, o que dá autenticidade às renovações do Direito, são as livres manifestações do Povo, em seus órgãos de classe, nos diversos ambientes da vida.

Quem deve propulsionar o desenvolvimento é o Povo organizado, mas livre, porque ele é que tem competência, mais do que ninguém, para defender seus interesses e seus direitos.

Sustentamos que uma Nação desenvolvida é uma Nação que pode manifestar e fazer sentir a sua vontade. É uma Nação com organização popular, com sindicatos autônomos, com centros de debate, com partidos autênticos, com veículos de livre informação. É uma Nação em que o Povo escolhe seus dirigentes, e tem meios de introduzir sua vontade nas deliberações governamentais. É uma Nação em que se acham abertos os amplos e francos canais de comunicação entre a Sociedade Civil e o Governo.

Nos Estados de Fato, esses canais são cortados. Os Governos se encerram em Sistemas fechados, nos quais se instalam os ­“donos do Poder”. Esses “donos do Poder” não são, em verdade, donos do Poder Legítimo: são donos da Força. O que chamam de Poder não é o Poder oriundo do Povo.

A órbita da política não vai além da área palaciana, reduto aureolado de mistério, hermeticamente trancado para a Socie­dade Civil.

Nos Estados de Fato, a Sociedade Civil é banida da vida política da Nação. Pelos chefes do Sistema, a Sociedade Civil é trata­da como um confuso conglomerado de ineptos, sem discernimento e sem critério, aventureiros e aproveitadores, inca­pazes para a vida pública, destituídos de senso moral e de idealismo cívico. Uma ­multidão de ovelhas negras, que precisa ser conti­nuamente contida e sempre tangida pela inteligência soberana do sábio tutor da Nação.

Nesses Estados, o Poder Executivo, por meio de atos arbitrários, declara a incapacidade da Sociedade Civil, e decreta a sua ­interdição.

Proclamamos a ilegitimidade de todo sistema político em que fendas ou abismos se abrem entre a Sociedade Civil e o Governo.

Chamamos de Ditadura o regime em que o Governo está separado da Sociedade Civil. Ditadura é o regime em que a ­Sociedade Civil não elege seus Governantes e não participa do Governo. Ditadura é o regime em que o Governo governa sem o Povo. Ditadura é o regime em que o Poder não vem do Povo. Ditadura é o regime que castiga seus adversários e proíbe a contes­tação das razões em que ela se procura fundar.

Ditadura é o regime que governa para nós, mas sem nós.

Como cultores da Ciência do Direito e do Estado, nós nos recusamos, de uma vez por todas, a aceitar a falsificação dos conceitos. Para nós a Ditadura se chama Ditadura, e a Democracia se chama Democracia.

Os governantes que dão o nome de Democracia à Ditadura nunca nos enganaram e não nos enganarão. Nós saberemos que eles estarão atirando, sobre os ombros do povo, um manto de irrisão.



7. Os Valores Soberanos do Homem, Dentro do Estado de Direito

Neste preciso momento histórico, reassume extraordinária importância a verificação de um fato cósmico. Até o advento do Homem no Universo, a evolução era simples mudança na organização física dos seres. Com o surgimento do Homem, a evolução passou a ser, também, um movimento da consciência.

Seja-nos permitido insistir num truísmo: a evolução do ­homem é a evolução de sua consciência; e a evolução da consciência é a evolução da cultura.

A nossa tese é a de que o homem se aperfeiçoa à medida que incorpora valores morais ao seu patrimônio espiritual. ­Sustentamos que os Estados somente progridem, somente se aprimoram, ­quando tendem a satisfazer ansiedades do coração humano, assegurando a fruição de valores espirituais, de que a importância da vida indi­vidual depende.

Sustentamos que um Estado será tanto mais evoluído quanto mais a ordem reinante consagre e garanta o direito dos cidadãos de serem regidos por uma Constituição soberana, elaborada livre­mente pelos Representantes do Povo, numa Assembléia Nacional Constituinte; o direito de não ver ninguém jamais submetido a disposições de atos legislativos do Poder Executivo, contrários aos preceitos e ao espírito dessa Constituição; o direito de ter um Governo em que o Poder Legislativo e o Poder Judiciário ­possam cumprir sua missão com independência, sem medo de represálias e castigos do Poder Executivo; o direito de ter um Poder ­Executivo limitado pelas normas da Constituição soberana, elaborada pela Assembléia Nacional Constituinte; o direito de escolher, em ­pleitos democráticos, seus governantes e legisladores; o direito de ser eleito governante ou legislador, e o de ocupar cargos na administração pública; o direito de se fazer ouvir pelos Poderes Públicos, e de introduzir seu pensamento nas decisões do Governo; o direito à liberdade justa, que é o direito de fazer ou de não fazer o que a lei não proíbe; o direito à igualdade perante a lei que é o direito de cada um de receber o que a cada um pertence; o direito à intimidade e à inviolabilidade do domicílio; o direito à propriedade e o de conservá-la; o direito de organizar livremente sindicatos de trabalhadores, para que estes possam lutar em defesa de seus interesses; o direito à presunção de inocência, dos que não forem declarados culpados, em processo regular; o direito de imediata e ampla defesa dos que forem acusados de ter praticado ato ilícito; o direito de não ser preso, fora dos casos previstos em lei; o direito de não ser mantido preso, em regime de inco­municabilidade, fora dos casos da lei; o direito de não ser conde­nado a nenhuma pena que a lei não haja cominado antes do delito; o direito de nunca ser submetido à tortura, nem a tratamento desumano ou degradante; o direito de pedir a manifestação do Poder Judiciário, sempre que houver interesse legítimo de alguém; o direito irrestrito de impetrar habeas corpus; o direito de ter Juízes e Tribunais independentes, com prerrogativas que os ­tornem refratários a injunções de qualquer ordem; o direito de ter uma imprensa livre; o direito de fruir das obras de arte e cultura, sem cortes ou restrições; o direito de exprimir o pensamento, sem qualquer censura, ressalvadas as penas legalmente previstas, para os crimes de calúnia, difamação e injúria; o direito de resposta; o direito de reunião e associação.

Tais direitos são valores soberanos. São ideais que inspiram as ordenações jurídicas das nações verdadeiramente civilizadas. São princípios informadores do Estado de Direito.

Fiquemos apenas com o essencial.

O que queremos é ordem. Somos contrários a qualquer tipo de subversão. Mas a ordem que queremos é a ordem do Estado de Direito.

A consciência jurídica do Brasil quer uma cousa só: o Estado de Direito, já.

Goffredo Telles Júnior

NOTA:

Antes de sua leitura, a “CARTA” foi subscrita pelos seguintes “Signatários-Lançadores”:

José Ignácio Botelho de Mesquita, Professor Titular da Faculdade Direito da USP; Fábio Konder Comparato, Professor Titular da Faculdade Direito da USP; Modesto Carvalhosa, Professor da Faculdade Direito da USP e Presidente da Associação dos Docentes da USP; Irineu Strenger, Professor Titular da ­Faculdade Direito da USP; Dalmo de Abreu Dallari, Professor Titular da ­Faculdade Direito da USP e Presidente da Comissão Justiça e Paz da Cúria Metropolitana de SP; Mário Simas, Vice-Presidente da Comissão Justiça e Paz; Geraldo Ataliba, Professor da Faculdade Direito da USP e da Faculdade Direito da PUC, ex-Reitor da PUC; José Afonso da Silva, Professor Titular da Faculdade Direito da USP; Miguel Reale Júnior, Professor da Faculdade de Direito da USP; Ignácio da Silva Telles, Professor da Faculdade de Direito da USP; Tércio Sampaio Ferraz, Professor da Faculdade de Direito da USP; Alcides Jorge Costa, Professor da Faculdade de Direito da USP; Gláucio Veiga, Professor da Faculdade de Direito da USP e da Faculdade Direito do Recife; Mário Sérgio Duarte Garcia, Vice-Presidente da Ordem dos Advogados de SP; Antônio Cândido de Mello e Souza, Professor Titular da USP; Paulo Duarte, Professor Catedrático da USP, aposentado; André Franco Montoro, Professor Catedrático da PUC e Senador; Flávio Flores da Cunha Birrembach, Professor da Faculdade Direito da PUC; José Carlos Dias, Advogado, Consultor Jurídico da Comissão Justiça e Paz, da Cúria Metropolitana de SP; Aliomar Baleeiro, ex-Presidente do Supremo Tribunal Federal e Professor da Faculdade Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro; Hermes Lima, ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal e Professor da Faculdade de Direito da Universidade Fedederal do Rio Janeiro; Heleno Fragoso, Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Janeiro; João Batista de Arruda Sampaio, Desembargador do TJSP, aposentado; Raul da Rocha Medeiros, Desembargador do TJSP, aposentado; Odilon da Costa Manso, Desembargador do TJSP, aposentado; Darcy de Arruda Miranda, Desembargador TJSP, aposentado; Hélio Bicudo, Procurador da Justiça de SP; Dom Cândido Padim, Bispo de Bauru, Bacharel pela Faculdade de Direito da USP; Sérgio Bermudes, Conselheiro Federal da Ordem dos Advogados; Tércio Lins e Silva, Conselheiro da Ordem dos Advogados do Rio; Cid Riedel, Conselheiro da Ordem dos Advogados do Distrito Federal; Ruy Homem de Mello Lacerda, ex-Presidente da Associação de dos Advogados de SP e Conselheiro; Walter Ceneviva, Vice-Presidente da Associação de Advogados; Sérgio Marques da Cruz, Conselheiro e ex-Presidente da Associação dos Advogados; Luciano de Carvalho, Secretário da Educação e Fazenda, do ­Governo Carvalho Pinto; João Nascimento Franco, Conselheiro do Instituto do Advogado e Ordem Advogado; Domingos Marmo, ex-Conselheiro da Ordem dos Advogados; Walter Laudísio, Conselheiro da Associação dos Advogados; Homero Alves de Sá, Conselheiro da Associação dos Advogados; Salim Arida, Conselheiro da Associação dos Advogados; José Carlos da Silva Arouca, Conselheiro da ­Associação dos Advogados; Joaquim Pacheco Cyrillo, Conseslheiro da Associação dos Advogados; Rubens Ignácio de Souza Rodrigues, Conselheiro da ­Associação dos Advogados; Jayme Cueva, Conselheiro da Associação dos ­Advogados; Maria Luiza Flores da Cunha Birrenbach, Procuradora do Município de SP; José Gregori, Advogado e Professor da PUC; Lauro Malheiros Filho, Advogado; Aldo Lins e Silva, Advogado; José Roberto Leal de Carvalho, Advogado; Cantídio Salvador Filardi, ex-Conselheiro da Ordem dos Advogados; ­Antônio Carlos Malheiros, Advogado; Luiz Eduardo Greenhalgh, Advogado; Márcia Ramos de Souza, Advogado; Arnaldo Malheiros, Advogado; Dione ­Prado Stamato, Procuradora do Estado de SP; Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França, Advogado; Pedro Garaude Júnior, Advogado; Alberto Pinto Horta Júnior, Advogado; Manoel Ferraz Whitaker Salles, Advogado; Maria Eugênia Raposo da Silva Telles, Advogada; Edmur de Andrade Nunes Pereira Neto, Advogado; Márcia L. B. Jaime, Advogado; Areobaldo Espínola de Oliveira Lima Filho, Advogado; Alexandre Thiollier Filho, Advogado; Jayme A. da Silva Telles, Advogado; Clóvis de Gouvêa Franco, Advogado; Agripino Doria, Advogado; Edgard de Novaes França Neto, Advogado; Edgard de Novaes França Filho, Advogado; José V. Bernardes, Advogado; Luiz Baptista Pereira de Almeida Filho, Advogado; Luiz Baptista Pereira de Almeida, Advogado; Marcelo Duarte de Oliveira, sacerdote e bacharel, Advogado; Celso Cintra Mori, Advogado; Clarita Carameli, Advogado; Paulo Pereira, Advogado; José Melado Moreno, Advogado; Maria Ferreira Lara, Advogada; Pedro Luiz Aguirre Menin, Advogado; José Nuzzi Neto, Advogado; João Henrique de Almeida Santos, Advogado; Carlos Alberto Queiroz, Advogado; Jayme Queiroz Lopes Filho, Advogado; Paulo R. C. Lara, Advogado; Walter Arruda Júnior, Advogado; Joaquim Renato Correia Freire, Advogado; Darcy Paulilo dos Passos, Advogado; Sílvio Roberto Correia, Advogado; Francisco Mencucci, Advogado; Antônio Costa Correia, Advogado; Francisco Otávio de Almeida Prado, Advogado; Marco Antônio Rodrigues Nahun, Advogado; Léo Duarte de Oliveira, Advogado.

Goffredo, o professor

Morreu o professor Goffredo da Silva Telles Junior, um grande brasileiro. Sua Carta aos Brasileiros, de 77, abaixo comentada, foi um desafio à ditadura. Foi casado com Lygia, o que engrandece sua biografia. Quando sua carta foi às ruas, pensou-se tudo, até que seria preso. Mas ele falava em nome "desse país".
Leiam sobre ele. Da Folha de hoje.


WALTER CENEVIVA

Goffredo
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Pode-se dizer que as ideias expostas por Goffredo Telles Junior orientaram, mudaram e inspiraram muitos brasileiros
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NA ANTIGA Grécia, séculos antes de Cristo, os heróis esportivos e os artistas populares eram mais conhecidos dos cidadãos do que os sábios e os filósofos.
Nesse campo, nada mudou no planeta Terra, quando se avalia a repercussão da morte recente de Goffredo da Silva Telles Junior, um dos grandes nomes da intelectualidade nacional, se comparada com a de artistas e esportistas conhecidos.
Dessa constatação nasceu a ideia de dar ao leitor a impressão pessoal de quem foi Goffredo e qual sua contribuição para o direito e para a civilidade brasileira, recordando os muitos anos em que tive o prazer de dialogar com ele.
Estiveram sempre presentes a firmeza e a amplitude de seus ideais, em visão equilibrada da distribuição da justiça. Este aspecto da sua personalidade repercutiu em seus atos; como professor, foi exemplo para os estudantes de direito, na graduação e na pós-graduação, empolgados, ano após ano, pela força do ensinamento recebido.
Goffredo foi professor titular da academia do largo São Francisco e acrescentou, em cada passo do magistério, a defesa vigorosa das liberdades públicas e das práticas democráticas.
Outro modo de ver o essencial dele está na leitura de seus livros. O mais intrigante de todos, "O direito quântico", foi dedicado a sua mulher, a advogada Maria Eugênia da Silva Telles, com quem teve a filha Olívia, que foi repórter desta Folha.
O livro sobre "o fundamento da ordem jurídica", conforme seu subtítulo, saiu em 1971 e despertou, desde logo, intenso debate. Nem por ser legal, a lei é legítima, escreveu no último capítulo, no qual reiterou o enquadramento sustentado em 1965 no ensaio "Resistência violenta aos governos injustos", encartado no volume "A democracia no Brasil".
Goffredo afirmou ilegítimas "as leis não nascidas do seio da coletividade, não confeccionadas em conformidade com os processos prefixados pelos representantes do povo, mas baixadas de cima, como carga descida na ponta de um cabo". Defendeu o respeito à liberdade e ao diálogo, no afirmar a legitimidade do direito quântico, por quantificar a movimentação humana, segundo o sistema ético de referência.
Foram de tal força os argumentos e a qualidade de sua exposição que os reiterou na abertura da "Carta aos Brasileiros", de 1977, para definir o Estado de Direito como o da obediência de Constituição emanada de Congresso democrático, em período no qual dominava a ditadura militar -cujas forças repressivas não hesitavam no uso da violência.
Depois dos muitos anos passados desde então, a "Carta" merece releitura, ao determinar, com clareza, rumos do pensamento verdadeiramente democrático, em prol do interesse geral. Defendia o afastamento da ordem jurídica ilegítima, da ditadura, que compunha a própria violência. Ao reverso, visava o retorno da legitimidade do direito vigente.
Pode-se dizer, sem temor de errar, que as ideias expostas por Goffredo da Silva Telles Junior orientaram, mudaram e inspiraram muitos brasileiros. Serve de exemplo sua definição: desordem é a ordem que não me convém.
Aplicada à ditadura, a reivindicação de liberdade democrática era desordem para os detentores do poder. A eles não convinha essa ordem com liberdade na circulação das ideias.