sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

A Janis Joplin da hora


Canta pra cacete, mas é tão cozida como.
A foto, de Marcos Arcoverde, foi tirada do portal do Estadão. Dispensado o recolhimento de direitos autorais.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Vencedores e vencidos

Janio de Freitas, na Folha de hoje.
Por quanto tempo haverá ainda a disputa entre a busca das verdades documentais da ditadura e os autores diretos, patrocinadores e cúmplices da tortura, dos assassinatos e dos desaparecimentos não é questão que caiba em perspectivas, promessas e nem mesmo em compromissos. Mas não é questão cega.
Houve motivos para a espera de que o presidente-professor-sociólogo-intelectual levasse a busca a avanços decisivos. O que apareceu foi um governo acoelhado, fingindo enganar, um presidente ensaboado de maneirismo a escorrer-se quando o assunto se aproximava.
Veio o presidente-companheiro-operário-preso PT. Razões bastantes de passado, desprendimento e compromisso para dar dignidade ao trato do assunto.
Foi comovente o esforço dos fervorosos, Paulo Vannuchi capaz de representá-los todos, nos oito anos em que viram mãos estendidas do poder, em sua direção, com a condição de não as pegarem. Toda iniciativa, além de retardatária, era destinada ao primeiro impulso para perder-se no ar. Ainda assim, para evitar a perda de controle, com uns fardados nas canelas ou cortando a frente dos fervorosos.
Deputada de pouca exposição e presença muito qualificada, Maria do Rosário, nova ministra Especial de Direitos Humanos, já na posse deu a mensagem de sua determinação. A presidente, nos seus dois discursos de posse, não diminuiu, ao negar ódio e ressentimentos, o valor que atribui ao passado dos oponentes da ditadura.
O que os dois casos significam, porém, é, no máximo, o que se sabe em qualquer caso: o embate entre a busca das verdades documentais e os comprometidos com essas verdades criminosas será mais ou menos o mesmo. Não por acaso, ainda hoje cadetes saem da Academia Militar das Agulhas Negras na Turma Garrastazu Médici, uma turma com o dever de honrar, usualmente honrar em qualquer sentido, o símbolo do período reconhecido como de maior e pior marginalidade da ditadura.
Mas o embate, em certa medida, já está decidido. Os pretensos guardiães das verdades podem vencer as famílias, e talvez não todas, que procuram conhecer o destino dado aos seus que a ética e a honradez militares não pouparam de tortura, assassinato, desaparecimento. Podem vencer o desejo de alguns sobreviventes de identificar seus algozes. Isso ainda podem.
Todo o essencial das verdades, no entanto, está conhecido. O buscado conhecimento das verdades documentais é uma dívida moral para com o país. Se não quitada, por quem pode fazê-lo, é como um ato traidor à história do Brasil.
Não haverá, porém, capítulos brancos. Já não faltarão traços nem cores ao registro pleno da ditadura, quando se reproduza o exemplo inaugural do "Tortura Nunca Mais" com todos os acréscimos disponíveis. Aos quais não falta, sequer, o "outro lado" confessional, digamos, de um cabo Anselmo, entre outros já conhecidos ou por serem -que não faltarão- legados. O tempo, como sempre, fará o restante em favor da história.
No interior do embate que seguirá, embora já com o lado vencedor e o vencido, o novo ministro de Segurança Institucional, general José Elito Siqueira, e sua frase são representativos, sínteses da concepção contrária às verdades: "Os desaparecidos são história da nação, de que não temos que nos envergonhar ou nos vangloriar".
Nada a fazer: vergonha, quem tem, tem.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

A luta com o papel

Roberto Da Matta, no Estadão de hoje.
Não há quem não tenha lutado com algum papel. Para muitos foi duro ser pai ou marido e foi mais complicado ainda ser democrata. Entre o papel e a pessoa há sempre um fosso e o seu preenchimento requer o entendimento do "axioma de Shakespeare". A observação segundo a qual o mundo é um palco e todos nós, homens e mulheres, somos meros atores. Todos temos nossas saídas e entradas e desempenhamos muitos papéis.

Papéis são fórmulas. Impossível rir num enterro ou ficar triste num baile de carnaval. Neste primeiro dia do ano, assisti à "posse" de Dilma Rousseff no cargo de presidente da República. A passagem da faixa presidencial foi, como tudo no Brasil, o fim de um processo gradual, iniciado com a diplomação pelo TSE e, dias depois, com a assinatura do livro de posse do cargo no Congresso. Dilma é a primeira mulher presidente do Brasil, mas ela assume o cargo sem nenhuma turbulência, inventada e abençoada que foi pelo carisma bem propagado do presidente Lula, que sai deixando a nova administração sob o signo da continuidade.

Inevitável observar essas transições que têm tantas consequências para as nossas vidas porque, afinal de contas, há teatro no poder, mas o poder não é teatro. Nas democracias, separar pessoas e papéis é algo fundamental, senão o seu fundamento. Nelas, não cabem os movimentos "fora X, Y ou Z" quando alguém é eleito para ocupar o papel de "supremo mandatário da nação", como diz a nossa autoritária fórmula cultural. Você pode ser contra um partido ou uma pessoa, mas não pode torcer contra a Presidência ou contra o seu país.

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Há papéis universais, como o de cidadão, pedestre, comprador, viajante, eleitor, etc... - e papéis especiais. Quanto mais importante, mais difícil e desejado é o papel. Há papéis que enriquecem, há os que marginalizam e os que notabilizam, como o de artista ou de escritor premiado. Há os superexclusivos, a serem ocupados por uma só pessoa que, por isso mesmo, encerram biografias, como os de papa, rei e presidente da república. Sem esquecer o de dita(dor)! Sua exclusividade é uma medida óbvia do seu poder de construir&destruir, daí a sua onipotência - a ser, se há bom senso - necessariamente controlada. Nos países de índole hierárquica que amam privilégios e o Estado serve para aristocratizar os membros do poder, esse cargo é incensado e a onipotência do papel contamina o seu ocupante. Uma imprensa livre e desinibida é o remédio contra essa dose de divindade e por isso ela é tão odiada quando uma pessoa se apossa da Presidência.

Papéis exclusivos fecham biografias e obrigam a um abandono do mundo, conforme viram Max Weber e Louis Dumont. Ler certas vidas como exemplos de renúncia do mundo, conforme sugeri faz tempo, ajuda a compreender tipos como Antonio Conselheiro, Pedro Malasartes, Lampião, Leonardo Filho, Jânio Quadros, Getúlio Vargas e outros. Figuras reais e imaginárias filiadas à corrente dos que por alguma tragédia, convicção ou decepção foram obrigadas a sair do mundo em que viviam.

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Dir-se-ia que o papel de presidente da república situa a pessoa no centro. Mas é justamente no centro onde jaz a maior solidão e as mais tenebrosas tentações. Como sabem as "celebridades", alguns papéis devoram seus ocupantes. No topo, qualquer movimento leva à planície. Por isso, as sociedades arcaicas cercavam a realeza com cargos dados ao nascer e perdidos ao morrer. No caso das democracias modernas, temos uma situação curiosa. O papel de presidente é perpétuo e todo-poderoso; mas a pessoa é, pela teoria, um cidadão falível e mortal. Sabe-se que o Congresso americano discutiu se o primeiro presidente do país, George Washington, deveria ser tratado como "Vossa Majestade" ou "Senhor". Ficaram, coerentemente, com a segunda fórmula. O resultado desse dilema entre um papel que transforma e a pessoa que a ele sobrevive é a idealização e o endeusamento dos que, num mundo de cidadãos, são elevados por tais cargos.

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A percepção do limite da pessoa no papel e do papel na pessoa é uma arte. Ser o n.º 1 de um país, tendo - como no caso do Brasil - todos aqueles puxa-sacos, mordomos, assessores, asseclas, aliados, secretários e empregados; poder gastar e usufruir tudo secreta ou abertamente; estar sujeito ao aval de sua própria ética porque entre nós a Presidência foi moldada numa cultura monárquica jamais discutida ou erradicada, é algo que poucos podem realizar com bom senso e honestidade. Por isso Lula falou em "desencarnar" do papel. Pois nele permanecer seria patológico e inviável. Até onde ele vai realizar isso, aceitando o tenebroso "ex" (há algo mais patético do que um ex-marido?), veremos. E até onde Dilma Rousseff vai nele se adaptar, será visto nos próximos quatro anos. A ambos o cronista deseja sucesso, pois como um encarnado antropólogo cultural que sabe de duas ou três coisas sobre a vida coletiva, ele compreende como deve ser duro sair e entrar de um papel que canibaliza, esgota e coage a ponto da tortura. Um cargo que obriga a ser presciente quando todos em volta nada sabem; que determina cautela quando não se tem tempo para decidir e inovação quando os hábitos exigem as velhas fórmulas; que determina impessoalidade num universo marcado pela ética da condescendência; que manda acreditar quando não se acredita. Um papel, enfim, eventualmente assassino, que pode crucificar o seu ocupante. Tal como ocorria com os messias, os profetas ou os velhos feiticeiros e hereges, que eram queimados vivos nas fogueiras.