Ivan Lessa, no BBC Brasil
Há algumas semanas o metrô em que eu fazia meu trajeto humilde ficou parado entre duas estações. Poucas pessoas no vagão. Um aviso do condutor pelo alto-falante nos informou de que teríamos de esperar por um trem emperrado mais adiante. Passam-se os primeiros dez minutos. O cavalheiro à minha frente faz muxoxos repetidos de impaciência. Uma senhora se abana. A maior parte continua a ler os letreiros dos anúncios ou a se concentrar (sem sair da mesma página) no jornal aberto diante de si.
Eu, que não chego a ser apavorado com lugares fechados, mas sou impaciente, olho repetidamente o relógio e, para passar o tempo, vou tentando me lembrar da letra inteira de uma velha valsa de Orestes Barbosa. A situação era chata. Nada de muito grave. Aos 20 minutos, um cidadão se levantou e começou a dizer qualquer coisa em voz alta. Não ouvi. Meu coração batia um pouco mais rápido e eu empacara naquele trecho de Serenata que vem logo depois de “na serpente de seda de teus braços”. Estava, definitivamente, deflagrada uma crise.
A coisa – a crise – durou uns bons 40 minutos. A bem da verdade, uns horrendos 40 minutos. Enfim, a voz do condutor, segura de si, nos informou que a situação fora resolvida e iríamos seguir viagem. Assim foi. Que não seja nunca mais. Não tenho temperamento para essas coisas.
Por isso mesmo é que venho acompanhando o drama dos mineiros chilenos com o maior interesse. Deixei há algum tempo de ter o “maior interesse” em qualquer coisa. No entanto, por um desses mistérios insondáveis, os mineiros chilenos passaram a ocupar boa parte de minha vida acordado e, às vezes, sob a forma de pesadelo, dormindo também.
Estou do lado deles que chego ao ponto de quase mandar carta para a imprensa britânica quando não noticiam nada. Quero, porque quero, saber como vão as coisas. E como deverão ir.
Não acompanho visitas papais, recessões, greves no metrô (os metrôs ocultam perigos, digo para mim mesmo como um paraguaio paranóico), escândalos políticos. A mim, no momento, e até o futuro previsível – meu Deus, será mesmo só no Natal? – meu pensamento, meu sofrimento, minha solidariedade é com os 33 mineiros chilenos presos a 700 metros de profundidade no deserto de Atacama. O resto do mundo que continue na sua: que se vire.
Sei de cor dos planos e previsões e das medidas até agora tomadas. Fico torcendo, em vão, bem sei, para que um segundo milagre aconteça (não morrer ninguém e eles estarem vivos foi o primeiro) e a ciência, de mãos dadas à tecnologia, traga todos os 33 para o solo firme chileno, onde há sol, nuvens, árvores e mesmo que chova um pouco não faz mal.
Uma das coisas mais comoventes que vi este ano foi o desenho feito num guardanapo por um dos 33, o José Ojeda, um viúvo de 45 anos, e cuja especialidade é a broca e a dinamite. Na tela improvisada, que uma revista americana publicou, lá está o esboço de onde e como vivem desde 5 de agosto.
Fui de lupa, para melhor saber como vivem, se é essa a palavra. Lá está a rampa. O “quarto” central de 50 metros onde os mineiros se reúnem para as refeições, papo e companhia. Lá estão os túneis que os 33 usam para dormir naquela noite constante em que vêm vivendo. Lá está o local onde fazem suas “necessidades”. Lá assinalados os tubos por onde recebem comida e coisas essenciais: um buraco de nada com 15 centímetros de diâmetro.
Mais que tudo, de doer, é o cuidado de Ojeda em mostrar onde ficam a maior parte do tempo (não há muita escolha) seus companheiros e amigos. A simples menção de seus nomes, nos garatujos que o homem escrevinhou dá uma coisinha lá dentro: Jonny Barrio, Carlos Barrio, Jimmy Sanchez, Dick Vega, Claudio Acuña – e paro por aqui, que já estou ficando sem ar, talvez por solidariedade, que sei indevida.
Penso no que os noticiosos informam, quando não tem mais escândalo a expor. Quando chegar o tempo, por volta do Natal, dizem, cada um dos 33 será literalmente içado à superfície numa viagem de duas horas, depois de sedados (para manter a calma) e terem os olhos vedados. A operação toda levará cerca de três dias.
Não consigo deixar de pensar no último a fazer a dolorosa, inda que tão ansiada, viagem. Consolo-me de minha (inútil) aflição sabendo que, entre os livros que os mineiros chilenos estão lendo, está um Manual de Como Falar em Público.
Desta distância toda, e cá em cima no que me asseguram que é a superfície, não consigo deixar de dar um palpite: mineiros chilenos, deixem esse livro de lado, que não deveriam ter mandado, como não mandaram nem a bebida alcoólica nem os cigarros pedidos. Cá em cima, de volta ao mundo dos homens, sejam o que estão sendo: de uma sobre-humana naturalidade.