sábado, 12 de junho de 2010

Aristóteles

Como sabemos, todo Estado é uma sociedade, a esperança de um bem,
seu princípio, assim como de toda associação, pois todas as ações dos
homens têm por fim aquilo que consideram um bem. Todas as sociedades,
portanto, têm como meta alguma vantagem, e aquela que é a principal e
contém em si todas as outras se propõe a maior vantagem possível.
Chamamo-la Estado ou sociedade política.

O bicampeonato no Chile

Em 1962, no Chile (pouco antes derrubado por um terremoto), o Brasil foi bicampeão mundial.
Pelé estourou a coxa (contra o México, se me lembro) e entrou Amarildo, o Possesso.
Foi a Copa de Mané Garrincha: fez gol de cabeça, de falta, de pé direito, o escambau. Foi até expulso e anistiado.
Nilton Santos cometeu pênalti (contra a Espanha, se não me engano), deu um pulinho e nada aconteceu.
Aconteceu o Brasil, show de bola, com quase todo o time de 58, sem Pelé, mas com Amarildo.
Era assim: Gilmar; Djalma Santos, Mauro, Zózimo e Nilton Santos; Zito e Didi; Garrincha, Amarildo, Vavá (sempre ele, o maior centroavante brasileiro em todas as copas) e Zagallo.
De novo: “A Taça do Mundo é nossa, com brasileiro, não há quem possa/ Eêta esquadrão de ouro/ É bom no samba, é bom no couro...”

E eu, ainda tampinha, bicampeão do Mundo.

O jornalista e o assassino

Li, uns 15 anos atrás, e reforcei - acredito - o que penso sobre a moral na profissão. Procuro trabalhar - e o jornalismo é trabalho, embora divertido e, às vezes, muito doído - moralmente correto. É o que falam: ético. Ética é aquele ramo da filosofia que analisa o comportamento em sociedade, a moral.
Li e leio Maquiavel, o mestre, sei dele e ele sabe de mim.
Procuro ser ético - prefiro moral.
Todo mundo escorrega, e eu, talvez, algumas vezes, tenha pisado no quiabo.
Nada que me envergonhe, não. Nada que envergonhe meu filho e minha mulher.
Sou pobre de marredeci, rico de discos e livros e bela família, o que não dá recibo a ninguém, concordo.
Absolvo-me pela intenção.
Sou profissionalmente feliz. Um dia conto minha pequena história.
Acho que, moralmente, cheguei lá. Cuidei-me, saí-me de encrencas várias, sobrevivi. Eu e muitos amigos. Vivo disso e morro disso. Anfã...


Fala Janet, abaixo do reliss:


O livro "O jornalista e o assassino - Uma questão de ética", de Janet Malcolm, Companhia das Letras (011/826-1822), é obra indispensável aos que se interessam pelos procedimentos da mídia. É uma reportagem acre sobre um jornalista (Joe McGinniss), que escreveu um livro (Fatal Vision) sobre um assassino (Jeffrey MacDonald) , e depois foi processado por ele. Janet, jornalista free lancer, dedicou-se ao caso, investigou os dois lados, deu razão ao assassino e arrasou com o jornalista. A abertura do livro tornou-se famosa pela severidade do julgamento:
"Qualquer jornalista que não seja demasiado obtuso ou cheio de si para perceber o que está acontecendo sabe que o que ele faz é moralmente indefensável. Ele é uma espécie de confidente, que se nutre da vaidade, da ignorância ou da solidão das pessoas. Tal como a viúva confiante, que acorda um belo dia e descobre que aquele rapaz encantador e todas as suas economias sumiram, o indivíduo que consente em ser tema de um escrito não-ficcional aprende - quando o artigo ou livro aparece - a sua própria dura lição. Os jornalistas justificam a própria traição de várias maneiras, de acordo com o temperamento de cada um. Os mais pomposos falam em liberdade de expressão e do "direito do público de saber"; os menos talentosos falam sobre Arte; os mais decentes murmuram algo sobre ganhar a vida.
A catástrofe, para aquele que é tema do escrito, não é uma simples questão de um retrato pouco lisonjeiro, ou de uma apresentação errada de suas opiniões; o que dói, o que envenena e algumas vezes leva a extremos de desejo de vingança, é o engano de que foi vítima. Ao ler o artigo ou livro em questão, ele tem de enfrentar o fato de que o jornalista - que parecia tão amigável e solidário, tão interessado em entendê-lo plenamente, tão notavelmente sintonizado com o seu modo de ver as coisas - nunca teve a menor intenção de colaborar com ele na sua história, mas pretendia, o tempo todo, escrever a sua própria história".

Humpty Dumpty

Publico só pra dizer que Fernanda Torres (cujo texto foi retirado da Folha deste sábado) escreve bem pra carajo. Longa vida às Fernandas mãe e filha.
HUMPTY DUMPTY era o nome que se dava às pessoas baixinhas e gordinhas na antiga Inglaterra. Por seu formato bojudo, assim foi batizado um canhão posto no alto das muralhas de Colchester, ao lado da igreja de Saint Mary, para defender a cidade do cerco dos parlamentaristas na guerra civil de 1642.
A artilharia inimiga atingiu em cheio a igreja, reduto dos pró-realeza, e...
"Humpty Dumpty na muralha sentou:
Humpty Dumpty lá de cima despencou
E nem todos os homens do rei a cavalo
Puderam de novo lá para cima levá-lo."
Séculos depois, Lewis Carrol imortalizaria a expressão na figura de um ovo pernóstico sentado no alto de uma muralha em "Alice Através do Espelho". Embora a simbologia de Carrol signifique outra coisa, a imagem de um ovo frágil e cheio de si, aboletado no alto de um paredão, me faz lembrar dos perigos de ficar em cima do muro, ou não tomar partido.
Sou vira-casaca por natureza. Nasci em berço Fluminense, mas um namorado me convenceu a virar Flamengo usando o argumento pesado de que o Fluminense era um time racista. Mais tarde, me casei e tive filhos tricolores. Hoje, torço pelos dois e por nenhum, sou o que de mais vil existe no esporte: o vira-casaca. A rivalidade competitiva nunca foi o meu forte.
A política é um sistema complexo sujeito tanto às grandes intempéries da história quanto às vaidades pessoais mais mesquinhas, formado por alianças e punhaladas pelas costas. Ciro Gomes que o diga.
Mas a corrida eleitoral, tão brutal quando uma final de Corinthians e Palmeiras, não comporta meios termos.
Jamais afirmei minhas convicções partidárias em público porque não acredito que um ator saiba do que está realmente falando quando o assunto é política.
Minto: Apoiei Fernando Gabeira na última eleição para a Prefeitura do Rio. Mas confesso que sua atual aliança com o DEM na Guanabara tenha me deixado com a sensação de "até tu, Brutus?!"
A popularidade às vezes cria a ilusão de que a sua opinião é importante, mas acredito que um ator saiba tanto o que está falando em política quanto um torneiro mecânico ou um advogado. E desconfio que nenhum desses profissionais entenda o que de concreto move a política.
Eu já dei provas contundentes das minhas limitações e volubilidade. Votei em Brizola e me arrependi. Votei em Lula no primeiro turno de 2002, porque achei que era a hora dele, e em Serra, no segundo, para equilibrar a balança. Diante de tanta incoerência, minha e dos que estão em volta, como tomar posições?
Sou um ovo instável no alto de uma montanha carioca. Ingênua, ou estúpida, demais para afirmar o que penso e receosa de servir de massa de manobra para interesses escusos. Um ser dispensável, desprezível e detestável para qualquer corrente de pensamento.
Pessoas como eu, incapazes de defender com convicção o que é melhor para o povo, para o Brasil e para si mesmas, são a escória da covardia humana. Mereceriam a guilhotina na Revolução Francesa e o paredón, na Cubana.
Os dossiês, boatos de internet e acusações mútuas de patifaria, ladroagem e traição me causam estupefação. Todos convictos de que o outro deseja o poder para enriquecer e se vingar dos que não o apoiaram.
Tudo calúnia e verdade. Para agravar, faço parte de um setor doente da nação. A cultura, cada vez mais dependente de verbas públicas para sobreviver. Sou tão tutelada quanto uma criança ou um índio. Que partido posso tomar?
O capítulo dedicado a Humpty Dumpty em "Alice" é também uma alegoria para o surgimento da concepção axiomatista, aquela que aceita a hipótese não comprovada como base de um raciocínio formal. Esse é o campo da arte, de Carrol, esse é o meu campo: o da fugidia subjetividade.
Me parece que as verdades irrefutáveis da corrida eleitoral dependem mesmo é de quem estará no poder.
"Não sei o que quer dizer com "glória'", disse Alice.
Humpty Dumpty sorriu, desdenhoso. "Claro que não sabe... Até que eu te diga. Quer dizer "um argumento belo e demolidor!'"
"Mas glória não significa "um argumento belo e demolidor'", Alice objetou.
"Quando eu uso uma palavra", disse Humpty Dumpty num tom bastante desdenhoso, "ela significa exatamente o que quero que signifique, nem mais nem menos".
"A questão é", disse Alice, "se você pode fazer as palavras significarem tantas coisas diferentes"."
"A questão", disse Humpty Dumpty, "é saber quem vai mandar, só isso".

A Taça do Mundo é nossa

Em 1958, na Suécia, o Brasil mudou de escalação durante o torneio e venceu a final, contra a Suécia, por 5 a 2, com Gilmar dos Santos Neves; Djalma dos Santos, Hideraldo Luiz Bellini, Orlando Peçanha de Carvalho e Nilton dos Santos; José Eli de Miranda (Zito) e Valdir Pereira (Didi); Manoel Francisco dos Santos (Garrincha), Edwaldo Izídio Neto (Vavá), Edson Arantes do Nascimento (Ele) e Mário Jorge Lobo Zagallo.
Com quatro dos Santos, um Jorge e mais o Rei, não podia dar outra.

Quanto a mim, já tinha reencarnado neste planeta. Lembro-me apenas do foguetório e da família urrando ao pé do rádio. Narração de Pedro Luiz, nome dado três anos antes ao meu primo pelo pai (Luiz Borracha, ex-goleiro do S.E.R.A., de Arapongas, que chegou a treinar no Palmeiras), em homenagem ao maior locutor de rádio de todos os tempos.

Eu, tampinha, campeão do mundo, afinal.

A maldição do vice

Aos que vão votar em Dilma (tampouco votarei em Serra; vou de Plínio): lembrem-se da dupla Tancredo e Sarney. Pergunto: e se morre a Dilma, o que é factível? Já imaginou?: "O presidente Michel Temer..."
Não merecemos.

Por uma cabeça


Esse é o título da matéria que abre o Yahoo, depois da vitória da Argentina sobre a Nigéria. Simplesmente genial - o título. Foi uma vitória de tango, com suspense, sofrimento, algo da agonia portenha mostrada em suas canções. Remete ao tango "Por una cabeza", de Alfredo de La Pera, magistralmente interpretado por Carlos Gardel (tenho-o e ouço-o amiúde). Pra quem não lembra, a música é a que embala o tango dançado por Al Pacino e aquela moça linda na refilmagem de "Perfume de mulher", belo filme, embora ainda prefira "Profumo di Donna", com Vittorio Gassman, de Dino Risi, um dos melhores da história, com genial interpretação do Vittorio. O título do Yahoo é genial, repito, a música é genial, também, mas a letra fala de uma derrota: cavalos e mulheres, ou não seria tango. Ao jogo: que o tal block no negão foi falta do argentino (abraçar no futebol, com ou sem carinho, com a bola em jogo, é falta, né?), o que permitiu o cabezazo do Heinze, isso foi. Tudo bem: torço pela Argentina, pela Nigéria, pela Espanha, pelo Brasiu. Torço pelo ludopédio.

Leia "Por una cabeza".
Por una cabeza de un noble potrillo que justo en la raya afloja al llegar, y que al regresar parece decir: No olvidéis, hermano, vos sabés, no hay que jugar. Por una cabeza, metejón de un día de aquella coqueta y risueña mujer, que al jurar sonriendo el amor que está mintiendo, quema en una hoguera todo mi querer. Por una cabeza, todas las locuras. Su boca que besa, borra la tristeza, calma la amargura. Por una cabeza, si ella me olvida qué importa perderme mil veces la vida, para qué vivir. Cuántos desengaños, por una cabeza. Yo jugué mil veces, no vuelvo a insistir. Pero si un mirar me hiere al pasar, sus labios de fuego otra vez quiero besar. Basta de carreras, se acabó la timba. ¡Un final reñido ya no vuelvo a ver! Pero si algún pingo llega a ser fija el domingo, yo me juego entero. ¡Qué le voy a hacer..!

sexta-feira, 11 de junho de 2010

A bola

A bola é redonda
Esfera
Quase esférica
Feito o planeta Terra
Que nem esfera perfeita é
Que parece uma bola recém-chutada
Esfera não geométrica
Ideal
Ao sabor
Ao saber do chute
Do terráqueo
Os pólos desnorteados
O norte magnético
Imantado no pé
Humano
Humana
Rumo ao gol
Ao grito inumerável
De gol
Na gaveta do universo

Microconto 9 de 100

Meu grande fracasso: casei-me com um sucesso.

Código de Hamurábi

25. Se acontecer um incêndio numa casa, e alguns daqueles que vierem acudir para apagar o fogo esticarem o olho para a propriedade do dono da casa e tomarem a propriedade deste, esta(s) pessoa(s) deve(m) ser atirada(s) ao mesmo fogo que queima a casa.

Notas sobre Paul, John, Michelle ma belle, o tempo que passa... e sobre caetanistas x chiquistas, e coincidências ou não

Sérgio Vaz, o Servaz, é meu amigo e foi meu editor, colega, chefe e o escambau no saudoso Jornal da Tarde (o que houve, dr. Ruy?); idem na Agência Estado, do mesmo grupo. É um dos raros coleguinhas que pesquisam sobre o que escrevem. Quando o Servaz dá opinião, não é só, fundamentalmente, opinião, gosto pessoal: é informação e interpretação. Pena que não haja publicação capitalista (impressa ou na web) que tenha Sérgio Vaz. Escreve como poucos sobre (fora o resto) música em geral, sobre rock em particular e muitas coisas mais. Sabe os Beatles, Bob Dylan (já publiquei aqui), o carajo a quatro. Está aposentado e feliz (eu também estaria, quem me dera, quem me desse?), escrevendo o belo www.50anosdetextos.com.br
Tem uma coleção de discos que nunca vi, mas invejo.
Cinema? Memória de elefante. Sabe pronunciar em russo o Eisenstein.
Sérgio Vaz é imbatível.
Leiam sempre o site do Servaz, porque sempre tem ele e gente dele, craques.
Roubei do site dele (porque ele deixa) e fiz gambiarra para ter sequencia dos textos a seguir.
Mais abaixo, sobre o velho Macca.
Macca e Servaz forévis.



Quando Paul McCartney fez 40 anos, em junho de 1982, o Jornal da Tarde publicou duas páginas com um perfil dele. É um dos meus textos feitos para publicação de que mais gosto.
Já há alguns meses queria botá-lo aqui neste site. Na verdade, queria botá-lo aqui desde que o site foi criado. Foi só por uma coincidência que acabei colocando o post no ar em junho de 2010, no mês em que Paul faz 68, e exatamente na semana em que ele se apresentou na Casa Branca para o casal Barack e Michelle Obama – e, para ela, cantou “Michelle, ma belle, sont de mots que vont très bien ensemble”.

Quando coloquei neste site meu texto sobre os 40 anos de Bob Dylan (publicado também no Jornal da Tarde, em duas páginas inteiras), escrevi que “seria muito esquisito botar no ar um texto escrito em 1981 sem acrescentar mais nada”. E aí fiz um novo e longo texto complementar sobre Dylan, focalizando basicamente o período posterior a 1981.

Gostaria muito de escrever um novo e longo texto complementar sobre Paul, focalizando basicamente o período posterior a 1982. Quero muito fazer esse texto. Mas, como há “distância entre intenção e gesto”, como ando ou preguiçoso ou não tão cheio de energia quanto três décadas atrás, decidi não esperar – aí vai Paul McCartney Volume 1, mesmo que o Volume 2 possa demorar, ou nem vir.

Mas, enquanto isso, me permito anotar duas ou três coisinhas.

* * *

A primeira: foi uma grande, fantástica sorte eu ter podido escrever sobre os 40 anos de Dylan, os 40 anos de Paul, e sobre discos e shows de Chico, Caetano, Nara, Gil, Elis, Milton, Roberto, Gonzaguinha, Renato Teixeira, na época em que tinha 30 anos. Foi, talvez, uma grande, fantástica coincidência – ou não. Sei lá o que é coincidência, se coincidência não existe, como parece que Jung escreveu, ou se a coincidência é a maneira de Deus permanecer anônimo.

Sei que aconteceu – Venus and Mars estava bem, naquela época. Muitos dos meus grandes ídolos são dos anos 40, e faziam 40 no início dos 80, quando eu, por acaso ou mero descaso, tive a oportunidade de escrever sobre música, nas horas vagas, no velho e então bom Jornal da Tarde.

* * *

A segunda: a responsabilidade, ou a culpa, por eu ter feito o texto sobre os 40 anos de Paul foi de Anélio Barreto. Na época, 1982, ele fazia frilas na revista Status, dirigida por outro amigo nosso, Gilberto Mansur; teve a idéia de me encomendar, para a Status, um texto sobre os 40 anos de Paul McCartney, “o beatle quadradão”. Revista mensal se fecha com grande antecedência, e eu tinha que entregar o texto, sei lá, uns dois meses antes de junho. Como li muito, fiz boa pesquisa, tive a idéia de oferecer para o Jornal da Tarde um outro texto para sair na data do aniversário de Paul.

Ficou, na minha opinião, muito melhor que o texto feito para a Status.

* * *

A terceira: sempre tinha sido um lennonista ferrenho. Meu lennonismo se acentuou ainda mais com o assassinato dele, em 1980. Sempre ouvi muito John, não perdi um disco solo dele (e perdi vários de Paul, que só iria ouvir direito mais tarde.) As canções políticas de John me encantavam absolutamente, faziam minha felicidade total. A partir de dezembro de 1980, então, ouvi John Lennon desesperadamente. Babava com a passagem dele do político para o pessoal, com a mistura que ele como ninguém soube fazer na vida mixando o político e o pessoal.

Vejo agora que foi durante a pesquisa para escrever sobre Paul – primeiro para a Status, e depois para o JT – que me transformei, definitivamente, num macartista empedernido.

Hoje, bem perto dos 64 – que eles, em 1967, John com 27, Paul com 25, achavam que estava longe demais –, poucas vezes paro para ouvir um disco de John, e ouvir Paul é um prazer sempre renovado.

* * *

Quando publiquei neste site meu texto sobre os dez anos sem John Lennon – encomendado por Regina Lemos em 1990, para publicação na revista que ela então dirigia, a Moda Brasil –, fiz uma boa consideração:

“Será sinal dos tempos, de maturidade (ser macartista, e não lennonista)? Maturidade, provavelmente, seria ser sempre lennon-mccartista – seria compreender que a genialidade era exatamente a soma-multiplicação-exponencial daqueles talentos tão díspares e, ao menos durante um bom tempo, tão complementares.

“Essa é uma bobagem-brincadeira tão velha quanto ser chiquista ou caetanista, ‘Sabiá’ ou ‘Caminhando’. Sempre fui fã de carteirinha de Caetano, desde antes do LP Domingo, seu primeiro, de 1966, mas, se entrasse em alguma discussão sobre a bobagem-brincadeira chiquismo x caetanismo, era chiquista desde criancinha. Mas como manter o chiquismo quando Chico apóia a Cuba dos Castro e Caetano tem a coragem maravilhosa de mostrar que o rei está nu, cultiva o anafabetismo e o país hoje cultiva uma idolatria à lá Stálin ou Mao?

“Bem, mas estes – tanto o lennonismo x mccartismo quanto o chiquismo x caetanismo – são temas que podem render bons e longos textos.”

Ainda virão aqui longos textos sobre esse tema.

Sir Paul na casa do senhor do Império

Ah, sim, Paul na Casa Branca. Gostaria de registrar um pouco sobre isso.

Sir Paul, cidadão do Reino Unido, aquela monarquia milenar, nascido na working class e transformado em cavaleiro por seus méritos, foi à Casa Branca receber o prêmio Gershwin da Biblioteca do Congresso americano, em sua terceira edição. Nas edições anteriores, o prêmio havia sido concedido a Stevie Wonder e Paul Simon. Um ser humano de pele negra, um ser humano de origem judaica, um ser humano nascido na working class do Império Britânico e transformado em Sir pela Rainha Elizabeth II, a que não morre nunca.

Me ocorre que, neste mesmo ano da graça de 2010, Sir Paul havia comparecido a outro evento na antiga colônia britânica além mar, um evento mais, como se diz hoje em dia, midiático: a cerimônia de entrega dos Globos de Ouro. Sentou-se, na ocasião, à mesma mesa em que estava Julia Roberts, a atriz mais bem paga do mundo. A pretty girl faria um comentário interessante: nunca tinha recebido tantos telefonemas na vida – amigos dela que estavam excitadíssimos porque ela, a atriz mais bem paga do mundo, estava à mesma mesa que Paul McCartney.

Relatou-se que Sir Paul, brincalhão, bobão como sempre, pediu licença a Barack para fazer um galanteio à sua mulher, e só então cantou “Michelle, ma belle, sont des mots que vont très bien ensemble…”

No East Room da Casa Branca, Sir Paul, cavaleiro do antigo Império Britânico, brincou de fazer galanteios à primeira dama do único Império da face da terra – fascinantemente, uma senhora de formação universitária respeitável, histórico de conquistas pessoais um pouco maiores do que, digamos, a bela Tereza Goulart ou a atual ocupante do posto semelhante no Palácio da Alvorada.

Epa: divago.

Transcrevo então como a notícia foi dada pelo Washington Post, versão online:

“Provavelmente o músico vivo mais influente, o arquiteto do pop de 67 anos estava no East Room para receber o Prêmio Gershwin da Biblioteca do Congresso para a Canção Popular, celebrando uma carreira sem paralelo que vai de seus anos com os Beatles, com os Wings, e sozinho. ‘Em uns poucos anos, eles mudaram a maneira como ouvimos música’, disse Obama sobre os Beatles, antes de entregar o prêmio a McCartney. Ele acrescentou estar “grato por um jovem inglês ter partilhado esse sonho”.

Hip, hip, hurrah, Sir Paul!

Quando Paul McCartney fez 40 anos

Por Sérgio Vaz
Para lembrar meu (meu, do Jorge) inesquecível amigo Emilson Schafron.
Nenhum músico popular foi tão criticado e tão adorado quanto James Paul McCartney.

Leve, inconseqüente, contrafação de rock, muzak, raso demais, piegas, sem consistência, fácil, sentimental, indulgente, primitivo, tépido, desinteressante, aguado, indiferente, conversa fiada, completamente inócuo, o ponto mais baixo do rock, trivialidade charmosa e inofensiva, compêndio de gracinhas caseiras, viscosos produtos de confeitaria, lamaçal de doces nadas.
Todas essas expressões foram usadas em livros e jornais, durante os últimos 12 anos (o texto é de 1982), para qualificar Paul McCartney, sua música e seus discos. As três últimas expressões citadas, por exemplo, estão na página 35 da edição de 1° de maio deste ano do New Musical Express, a mais importante e respeitada publicação sobre música popular da Inglaterra.

Mas não é só na página 35 que o nome de Paul McCartney aparece; ele está também na página 2 da mesma edição do semanário, a página tradicionalmente dedicada à lista dos discos mais vendidos. Paul McCartney está em primeiro lugar na lista dos compactos simples mais vendidos, com “Ebony and Ivory”; o compacto havia sido lançado três semanas antes e já então ocupava o 17° lugar da lista; na semana seguinte, pulou para o segundo lugar; na outra, já estava em primeiro.

Um mês depois, no último dia 31 de maio, do outro lado do Atlântico, a revista Billboard publicava a lista dos 20 LPs mais vendidos e executados nos Estados Unidos. Primeiro lugar: Tug of War, de Paul McCartney.

Paul McCartney e primeiro lugar são expressões que se dão muito bem, juntas.

Pois, se há 12 anos, desde o fim dos Beatles, critica-se com tão violentos adjetivos a música de Paul McCartney, já lá se vão 20 anos que ele freqüenta os primeiros lugares das listas de mais vendidos e mais executados. E freqüenta com uma assiduidade jamais igualada por qualquer outro nome.

Foram citados aqui muitos adjetivos, mas adjetivos são coisas escorregadias, dependem do gosto do freguês. Números são outra história, não admitem contestação. Vamos a alguns números.

Paul McCartney foi o cantor que mais discos de ouro ganhou, em toda a história da indústria fonográfica. Foi o compositor que mais obras colocou nas listas dos discos mais vendidos na Inglaterra, de 1956 a 1973 (seguem-se, pela ordem, John Lennon, Gerry Goffin e Carole King). Mais ainda: ele é, hoje, o compositor que mais arrecada com direitos autorais, em todo o mundo.

Isso, é bem verdade, inclui também a produção do período em que Paul McCartney pertenceu a um conjunto de quatro músicos chamado Beatles, e aí é covardia, porque, afinal, os Beatles são o maior fenômeno musical da história. Vamos, então, a números posteriores ao fim dos Beatles. Paul costuma dizer que ganhou mais dinheiro em dois anos, com o seu conjunto Wings, do que em todos os anos como Beatle. Pelos shows, contratos com gravadoras, percentagem pela venda de discos e principalmente com direitos autorais, recebe por ano a absurda quantia de cerca de 20 milhões de libras – ou cinco bilhões e quatrocentos milhões de cruzeiros.

“Paul McCartney conseguiu mais, em termos de vendagem de disco, do que os outros três juntos”, informa 25 Years of Rock, um livro cuja preocupação básica são números, e não os adjetivos. Esse e outros livros informam: todos os LPs de Paul McCartney, desde 1970, ano da separação dos Beatles, até 1978, chegaram à lista dos dez mais vendidos na Inglaterra. Seis dos oito LPs desse período chegaram ao primeiro lugar nos Estados Unidos. Um deles, Band of the Run, de 1973, ficou três anos na lista dos mais vendidos nos Estados Unidos; foi um dos LPs de maior vendagem da década (até 1977, três milhões e meio de cópias, só no mercado americano), e o mais bem-sucedido, comercialmente, de todos os LPs dos quatro ex-Beatles. “Mull of Kentyre”, compacto simples lançado no segundo semestre de 1977 pelo seu conjunto Wings, foi o disco mais vendido de toda a história, na Inglaterra – mais, portanto, até mesmo que os grandes sucessos daquele outro conjunto a que Paul McCartney pertenceu, como “She loves you”, “I want to hold your hand”, “Help”, “Penny Lane”, “Hey Jude”, “Let it be”.

Paul McCartney é, certamente, o único músico que foi superstar duas vezes.

Recomeço

No dia 8 de fevereiro de 1972, um rapaz de 30 anos incompletos apresentou-se a um funcionário da Universidade de Nottingham – cidade de 300 mil habitantes, a meio caminho entre Londres e Liverpool – , e perguntou se ele e seu conjunto poderiam tocar no campus no dia seguinte. No dia seguinte, umas poucas centenas de estudantes ouviram a primeira apresentação pública do recém-criado conjunto Wings: Denny Seiwell, bateria; Denny Laine, guitarra; Henry McCullough, guitarra; Linda McCartney, vocais e teclados; e, na guitarra baixo e voz, o rapaz que pedira autorização para se apresentar. Paul McCartney estava de volta à estrada.

Durante as semanas seguintes, o grupo percorreu estradas inglesas numa perua, parando para dar rápidos concertos em salões de baile de universidades, concertos em geral acertados com a administração poucas horas antes. Num desses dias, o grupo cancelou uma apresentação na Universidade de Leeds, ao saber que a imprensa havia sido avisada do acontecimento e estaria presente.

Paul McCartney queria acostumar-se de novo ao palco – desde 29 de agosto de 1966, dia em que os Beatles fizeram sua última apresentação ao vivo, em um parque de São Francisco, Califórnia, ele não fazia shows. Queria, também, praticar com o novo conjunto, que havia criado no final do ano anterior, 1971; fazer ensaios gerais, ao vivo, diante de platéias – mas platéias pequenas, pouco exigentes, que se satisfizessem com o simples fato de estar vendo um ex-Beatle em carne e osso. Mas, até que os ensaios chegassem a um nível razoável, queria estar longe da imprensa, da opinião pública.

Paul estava mal com boa parte da opinião pública naquele ano de 1972. Muita gente o responsabilizava pelo fim dos Beatles – e o odiava por isso. Afinal, tinha sido ele o primeiro a anunciar oficialmente que estava deixando o conjunto, em uma entrevista de pergunta e resposta inteiramente preparada por ele mesmo e que vinha encartada no seu primeiro disco solo, McCartney, de 1970. (Na entrevista, ele apontava os motivos pelos quais se separava do conjunto. Suas palavras: “diferenças pessoais, diferenças musicais, diferenças empresariais e sobretudo porque eu gosto mais de ficar com a minha família”.) Tinha sido ele que “traíra” o conjunto, insistindo em lançar aquele disco antes mesmo do lançamento de Let it Be, o último LP dos Beatles a chegar às lojas. Tinha sido ele que, em dezembro daquele ano de 1970, entrara na Justiça pedindo o fim oficial do conjunto e da sociedade que geria seus negócios, a Apple Corps. Ltda.

Claro, não foi Paul quem quis e provocou o fim dos Beatles. As coisas não são assim tão simples – e, ao contrário, se houve alguém que fez o possível para que os quatro não se separassem , foi justamente Paul. Mas o que transparecia era que Paul tinha saído primeiro – e milhões de pessoas, no mundo inteiro, acreditavam nas aparências.

Além disso, para uma enorme multidão de fãs do conjunto, e para a quase totalidade dos autores e jornalistas que escreviam sobre música popular, depois da separação dos Beatles John Lennon passou a ser visto como o santo, o profeta, o gênio, o apóstolo da revolução, o anti-establishment, o anticonvencional, o líder da contracultura. Paul McCartney era o careta, o quadrado, o burguês, o tipo-família. “A história foi convenientemente reescrita, apresentando São John como o heróico fora-da-lei, e Paul como o invertebrado cumpridor dos deveres” (Nick Kent, no New Musical Express, 1982). “A maioria dos críticos já estava inclinada a tomar partido de Lennon na guerra civil dos Beatles: Paul era visto como o traidor da contracultura, que tinha feito os Beatles se separarem e vendido sua alma ao Sistema” (Nicholas Schaffner, em seu livro The Beatles Forever, 1977). “As músicas de John Lennon descreviam luta, enquanto as de Paul negavam qualquer luta. John cultivava sua rebelião e sua raiva; Paul se decidia pelo brilho, pelo estrelato” (Greil Marcus, em artigo no livro The Rolling Stone Illustrated History of Rock & Roll, 1980).

Assim, foi em parte para não atrair novas críticas virulentas e desgastantes que Paul preferiu voltar aos palcos tateando, devagar, cuidadosamente, quase em sigilo. No meio do ano, ainda em 1972, o grupo Wings excursionou por sete países periféricos (em termos de show business) da Europa, como Suécia e Finlândia, apresentando-se por 26 vezes em teatros pequenos.

No meio do ano seguinte, tomou coragem para fazer uma excursão pelas principais cidades da Inglaterra. Em novembro, o grupo Wings estava reduzido a apenas sr. e sra. McCartney e mais o fiel guitarrista Denny Laine. (O grupo passou por diversas formações entre 1971 e 1979; só o casal McCartney e Laine permaneceram todo o tempo.) Naquele mês de novembro, Paul lançou o quinto LP da era pós-Beatles, Band of the Run. Vendeu demais, como já foi dito aqui – mas isso nem interessava tanto; vender bem, ele sempre vendeu, inclusive nos quatro discos anteriores, impiedosamente malhados pela crítica. O interessante é que ninguém teve coragem de dizer, sobre Band of the Run, nada menos entusiástico do que bom, excelente, grande.

De novo no topo

No auge da Beatlemania, no verão de 1964, 55 mil pessoas foram ao Shea Stadium, um estádio de beisebol em Nova York, ver os superstars John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr. Em abril de 1976, foram abertas as bilheterias do Madison Square Garden de Nova York para a venda de ingressos para os dois shows que o grupo Wings iria fazer (leia-se os dois shows que Paul McCartney iria fazer), nos dias 24 e 25 de maio. Em três horas, os 40 mil ingressos foram vendidos.

Depoimento de quem esteve lá e viu:

“Sua voz nunca esteve em melhor forma do que naquelas duas noites no Garden. A voz é um dos grandes instrumentos do rock, certamente um dos mais versáteis. Por mais de duas horas sua voz passeou por toda a escala entre o sussurro e o grito, sempre alcançando notas que a maioria dos cantores de rock sequer sabem que existem, nunca vacilando ou saindo do tom. (…) Ninguém pensou em cunhar a palavra “Wingsmania”. A multidão estava ali por uma única razão: ver e ouvir um indivíduo. De fato, o momento mais emocionante aconteceu quando o restante do conjunto Wings saiu do palco, e Paul acomodou-se em uma cadeira com seu violão acústico, cantando ‘Blackbird’ e ‘Yesterday’.” (A descrição é de Nicholas Schaffner, no livro The Beatles Forever.)

As apresentações em Nova York faziam parte de uma gigantesca turnê que durou 13 meses, de setembro de 1975 a outubro de 1976, e durante a qual o conjunto tocou em 11 países, diante de mais de dois milhões de espectadores. Muita coisa, claro. Mas nada tão desgastante, tão absurdo, tão desumano quanto no tempo dos Beatles, quando eles fizeram turnês uma atrás da outra, praticamente sem parar, de 1963 a 1966, por todas as cidades de alguma importância da Inglaterra e da Escócia, e mais Hong Kong e as grandes cidades da Suécia, França, Dinamarca, Austrália, Nova Zelândia, Itália, Espanha, Alemanha, Japão, Canadá e Estados Unidos (só aos Estados Unidos, foram quatro vezes, entre fevereiro de 1964 e agosto de 1966).

Naqueles tempos eles eram mais jovens, mais loucos. Durante a sua pré-história, antes de se transformarem no conjunto musical mais famoso do mundo, eles já estavam acostumados a um ritmo alucinante, quase inacreditável, de tocar um rock vigoroso, barulhento e rude durante oito horas por noite (às vezes até mais), sete dias por semana em infectos clubes de bairros barra pesada de Hamburgo, para descansar e dormir nas poltronas de um cinema vizinho e usar o imundo toalete dos homens como camarim e seu único banheiro. Isso foi por volta de 1960. Seu primeiro disco oficial, o compacto simples “Love me do”, saiu em outubro de 1962; a partir de 1963, eles começaram a ganhar mais dinheiro que qualquer outro músico do mundo, mas não havia sequer muito tempo para usar esse dinheiro. A vida era uma seqüência interminável de show, condução para o hotel, condução para a cidade seguinte, show, condução para hotel, avião para outro país, condução para o hotel, condução para o show, etc., etc., etc. Com interrupções, é claro – para gravar, filmar, dar entrevistas…

Paul – o único dos quatro ex-Beatles que, depois da separação, voltou a fazer grandes turnês – aprendeu a lição. Durante essa excursão de 1975 a 1976, diversas casas foram alugadas para os membros do conjunto, em diferentes locais. Depois de cada show, eles eram levados de avião para a casa mais próxima, onde já estava tudo preparado para recebê-los – não era necessário sequer desfazer malas.

E, sempre que possível, as crianças do casal McCartney os acompanhavam nas excursões com o inevitável batalhão de empregadas, governanta, etc.

Afinal, apesar de trabalhar muito (ele sempre foi o ex-Beatle mais ativo, mais empreendedor, mais produtivo), Paul sempre disse, desde o seu casamento com Linda Eastman, em março de 1969, que seu principal interesse era a família – depois, então, vinha a música.

Paul, de fato, sempre demonstrou que gosta da vidinha em casa, cercado pelos filhos, ao lado da mulher. Não é muito dado a festas, reuniões sociais, badalações. “Só fico à vontade com gente que conheço”, confirmou ele à revista Newsweek, há poucas semanas. Poderia ter acrescentado que só fica à vontade nos lugares que conhece. Enquanto John optou por viver em Nova York, por considerá-la a capital do mundo (“Se eu vivesse há dois mil anos – ele disse, no começo dos anos 70 – gostaria de morar em Roma. Isto aqui é a Roma de hoje”), e Ringo flutuava sua cabeça leve e boa entre Los Angeles e Monte Carlo, Paul jamais abandonou a Inglaterra. Apesar do imposto de renda que, naquele estranho e distante país, taxa violentamente os ricos. Mais ainda: mora exatamente nos mesmos lugares em que já morava nos distantes tempos dos Beatles.

Ele tem uma casa, comprada ainda em 1966 por 40 mil libras (cerca de 10 milhões e oitocentos mil cruzeiros), no bairro londrino de St. John Woods, pertíssimo dos estúdios da gravadora EMI, onde os Beatles gravaram seus discos. Uma casa ampla, confortável, de três andares, mas sem qualquer ostentação. É ali que fica quando está em Londres, gravando ou cuidando dos negócios da MPL Communication Inc. (MPL significa McCartney Productions Limited), a empresa que, entre outras coisas, trata da arrecadação dos seus direitos autorais, da edição de seus discos, das suas apresentações ao vivo e da gravação de filmes promocionais.

Mas o seu refúgio fica na Escócia, numa península a oeste de Glasgow, chamada Kintyre, junto do Canal do Norte, que separa a Escócia da Irlanda do Norte. A cidade mais próxima da fazenda de Paul, ali, chama-se Campbelltown e tem seis mil habitantes – menos do que duas quadras do Jardim América.

Mesmo antes da separação dos Beatles, ele já havia comprado a fazenda na península de Kentyre (o nome ficaria mundialmente famoso por causa da canção de 1977); em 1970, comprou uma área contígua, de 400 acres. É impossível que uma visita indesejável chegue à casa de pedras, isolada por grandes portões e por pântanos e guardada por cães treinados.

Ali, ele convive com os quatro filhos: Heather, hoje com 18 anos, filha de uma primeira união de Linda e que Paul adotou com o mesmo carinho que dá a Mary, hoje com 11 anos, Stella, hoje com nove, e o caçula James Louis, hoje com quatro. Canta para eles, atendendo a seus pedidos – canções antigas ou outras que inventa na hora para agradá-los. Planta sua horta – uma vez a polícia descobriu lá, entre outros vegetais, alguns pés de maconha, o que lhe valeu uma multa, num dos quatro diferentes episódios em que se envolveu com a lei por porte ou uso de drogas. Vê televisão – se confessa “um telemaníaco”. Lê histórias em quadrinhos e novelas de ficção científica. Come a comidinha preparada pela própria mulher. Cria carneiros e, sempre que pode, participa pessoalmente da tosquia.

Paixão, ódio

Na capa de Ram, seu segundo LP após o fim dos Beatles, lançado em maio de 1971, há uma foto de Paul segurando um carneiro pelo chifre (Ram significa justamente carneiro). Apenas quatro meses depois, chegou às lojas o segundo LP de John Lennon, feito depois da separação dos Beatles, Imagine; dentro havia uma foto-brinde de John segurando um porco pelas orelhas, numa óbvia gozação ao ex-parceiro. Mas era no próprio disco que chegava ao ponto mais agudo o ódio destilado por John contra Paul e que várias entrevistas reproduziam no mundo inteiro. Uma faixa, “How do you sleep?”, era inteiramente dedicada a xingar o homem que durante 15 anos foi o grande amigo e parceiro de John em cerca de 180 canções, várias delas entre as melhores já feitas no planeta. John diz que Paul é dominado por Linda; que em toda a sua vida, só fez “Yesterday”, e o resto é bobagem: que uma cara bonita dura um ano ou dois, mas logo as pessoas iriam descobrir que ele não vale nada; que ele deveria ter aprendido alguma coisa, durante aqueles anos todos em que tinham estado juntos; que o som que ele cria é muzak – música banal, monótona, emasculada, repetitiva, tola.

É inegavelmente chocante que companheiros tão íntimos e próximos viessem a público lavar sua roupa suja. Mas pode-se até compreender. A relação entre John Lennon e Paul McCartney sempre foi muito profunda, os vínculos muito fortes – e, afinal, é comum que, ao fim de uma relação de amizade, paixão, respeito, interação, sobrevenham queixas, reclamações, ciúmes, disputas, invejas, críticas. Ódio, enfim.

Paul e John se conheceram adolescentes: Paul tinha 14 anos, John, 16. Era 1956. Nos dez anos seguintes, durante toda a passagem da adolescência para a maturidade, dos bairros operários de Liverpool para a fama mundial, os dois ficaram juntos a maior parte do tempo, compondo juntos, tocando juntos, fazendo farra juntos, experimentando drogas juntos. E passaram boa parte desse tempo trancados em hotéis ou ônibus, escondidos do mundo, fugindo das hordas de fãs histéricas e delirantes.

Isso explica, em parte, por que a parceria Lennon-McCartney era tão íntegra, tão umbilicalmente coesa, nos primeiros tempos dos Beatles. Compondo, Lennon e McCartney formavam quase um ser à parte, Lennonmccartney. E esse ser não era o resultado apenas da soma de cada um dos maravilhosos talentos individuais; era mais – era o resultado da interação de dois talentos e duas personalidades diferentes, quase antagônicas, e por isso mesmo, complementares. Um, rebelde, irônico, inquieto, amargo, aberto a novidades e experiências, preguiçoso, dispersivo. O outro, calmo, tranqüilo, sereno, com tendência para a doçura e o romantismo, trabalhador, disciplinado. Um complementava o outro naquilo em que o outro era mais fraco; um aparava os excessos do outro, naquilo em que o outro era menos autocrítico. E mais ainda: um inspirava o outro, forçava o outro a se aperfeiçoar, a produzir mais e melhor.

Tinha sido assim desde o primeiro dia. Naquele ano de 1956, quando o garoto John Lennon, líder de um conjuntinho chamado The Quarrymen, foi apresentado ao garoto Paul McCartney e o ouviu tocando guitarra, pensou: “Ele é tão bom quanto eu. Se ele entrar no conjunto, o que será que vai acontecer?” O próprio John disse isso ao jornalista Hunter Davis, autor da única biografia autorizada dos Beatles, The Beatles – The Authorized Biography, reeditada em 1978. E Hunter Davies descreve em seguida como, ao saber que Paul compunha suas próprias músicas, John passou também a compor as suas – “para não ficar pra trás”.

Muitos anos e uma revolução musical depois, quando os Beatles pararam de se apresentar ao vivo e de fazer excursões, cada um passou a ter mais tempo para cuidar da própria vida, do seu próprio caminho. A partir daí, passou a haver cada vez mais canções de Paul McCartney e canções de John Lennon, embora a assinatura continuasse sendo Lennon-McCartney. Foi aí, também, que o fim dos Beatles começou.

John iria trocar os Beatles, e especialmente Paul, por Yoko Ono, uma pessoa que, ao contrário de Paul, era seu igual, e não seu pólo oposto: uma mulher forte, enérgica, cheia de vitalidade e vontade de subverter padrões da arte e o comportamento. Paul iria trocar os Beatles, e especialmente John, por Linda Eastman , uma pessoa que, ao contrário de John, era seu igual, e não seu pólo oposto: uma mulher sem maiores ambições de realização pessoal e artística, dócil, meiga e mansa, incapaz de contrariar o parceiro, dizer não.

A separação, depois de tantos anos de união, foi dolorosa como costumam ser todas as separações, com censuras, queixas e críticas de parte a parte, mais as difíceis, penosas, desgastantes discussões sobre a partilha dos bens na Justiça, em processos que duraram vários anos.

John destilou seu ódio pelo ex-companheiro aberta e acidamente, em público, porque este era seu estilo de fazer as coisas: ele sempre foi o que colocou tudo o que sentia nas suas composições, na sua voz, nas declarações à imprensa. Paul dificilmente se mostra, abre a alma, desabafa. Deu respostas às críticas de John e da imprensa, é verdade, em muitas de suas músicas – mas respostas educadas, polidas, gentis, sutis. “Algumas pessoas conseguem dormir à noite achando que o amor é uma mentira. Algumas pessoas jamais compreendem” (“Some people never know”, 1971). “Você pensa que as pessoas já se encheram de tolas canções de amor. Mas eu vejo que não é bem assim. Algumas pessoas querem encher o mundo com tolas canções de amor. E qual é o problema?” (“Silly love songs”, 1976).

Qual é o problema?

O problema foi exposto de uma maneira clara, límpida, pelo crítico Richard Goldstein, escrevendo no jornal Village Voice sobre a turnê americana do grupo Wings em 1976 (durante a qual, aliás, Paul cantava “Silly love songs”). “Ele poderia ter sido um jovem Kurt Weill, o nosso representante. Mas, em vez disso, ele preferiu ser uma estrela”.

Aí está. É bem a súmula, o resumo de tantas críticas, de tantos adjetivos, como os que foram citados no começo deste texto. O problema é que praticamente toda uma geração esperava muito de Paul McCartney. Esperava que ele, tantas vezes chamado de o mais Beatle dos Beatles, fosse o substituto dos Beatles, na ausência do conjunto que ajudou a mudar a cabeça de milhões de pessoas em todo o mundo. Esperava que ele fosse o representante das dores, das inquietações de todos nós. O porta-voz.

“Paul poderia ter sido artisticamente mais ambicioso; ele tem todo o potencial para produzir obras ainda mais brilhantes”, disse Nicholas Shaffner, em The Beatles Forever.

Aí está. O problema não está nas músicas e nos discos que Paul McCartney cria – o problema está no fato de que as pessoas exigem dele o que ele não tem interesse em dar.

Nós todos conhecemos bem esse problema, não é? Caetano Veloso conhece bem. Gilberto Gil conhecer bem.

Tambores diferentes

Quando Paul McCartney se apresentou por duas noites no Madison Square Garden, em 1976, John Lennon não se deu ao trabalho de andar as 30 quadras que separam o grande ginásio de seu apartamento no Dakota Building, diante do Central Park. John estava lá trancado, fazendo exatamente aquilo que tanta gente criticou em Paul: cuidando de si e da família. Da metade de 1975 até a metade de 1980, John não entrou uma vez num estúdio de gravação. Estava trocando as fraldas de Sean, preparando a comida de Sean – feliz da vida. Quando, finalmente, foi para o Hit Factory, em Nova York, gravar Double Fantasy, levava sete novas composições. Em nenhuma delas tratava da discriminação racial, da escravidão da mulher, do militarismo, de presos políticos, do esmagamento da classe operária, temas constantes em seus primeiros discos pós-Beatles. Sequer tratava de exorcizar seus demônios interiores. Seis das sete músicas eram singelas canções de amor – uma de amor a Sean, as outras de amor a Yoko. Na sétima, ele falava justamente disso, de não estar mais no carrossel: “As pessoas dizem que eu sou preguiçoso, desperdiçando minha vida em sonhos. ‘Você não sente faltas dos grandes tempos, garoto, agora que você não está mais no baile?’ As pessoas fazem perguntas, perdidas, confusas. E eu digo a elas que não existem problemas, só soluções”.

John Lennon chegava aos 40 anos de idade em paz consigo e com o mundo.

Quando a notícia de que John Lennon acabara de ser assassinado chegou à Inglaterra, puseram um microfone diante de Paul McCartney e perguntaram o que ele tinha a dizer. “Eu respondi; ‘É um choque’. O que, é claro, parecia uma coisa muito frívola de se dizer. Mais tarde, naquela noite, eu fiquei soluçando e chorando e tudo veio para fora. Eu não era nada daquela figura toda composta que disse: ‘É um choque’. Mas eu não tenho de pedir desculpas e dizer ‘sinto muito, não sou bom nessas coisas’. Eu sou assim.” (Essas declarações de Paul são do mês passado.)

Paul McCartney sabe que é assim: ele dificilmente se abre, mostra suas feridas.

Em Tug of War, o disco que chegou às lojas pouco antes de Paul fazer 40 anos (seu aniversário foi ontem – 18 de junho de 1982), há uma balada chamada “Here today”. O acompanhamento é feito pelos mesmos instrumentos (violão e quarteto de cordas) de “Yesterday”, a música de Lennon-McCartney que foi interpretada pelo maior número de cantores (até 1977, havia 76 gravações diferentes da música à venda no mercado norte-americano). “Here today”, no entanto, dificilmente será gravada por qualquer outro artista. É um monólogo personalíssimo de Paul McCartney dirigido ao amigo-inimigo morto. Ele lembra os tempos em que estiveram juntos, as diferenças que os separaram, a amargura da separação, a noite em que choraram. E ele, que não é de se mostrar, se mostra inteiro: “Eu não estou mais prendendo as lágrimas. Eu te amo”.

É o momento mais emocionante de seu 12º LP em 12 anos pós-Beatles e seguramente o melhor, ao lado de Band on the Run. (Tug of War já não traz o nome Wings, assim como o LP anterior, de 1980. É creditado a Paul McCartney, apenas.) Mas não é tudo. Ele, tantas vezes acusado de fazer apenas baladinhas, faz excelentes rocks, lembra os tempos do boppy, envereda até pelo funk – e genialmente. Mas não é tudo. Ele, tantas vezes acusado de fazer apenas musiquinhas sentimentais, goza a desvalorização das moedas, ataca o racismo, prega a harmonia entre negros e brancos. E, na faixa título, produz uma soberba obra-prima, de uma riqueza sonora somente comparável às melhores obras dos Beatles, e condena a competição entre as pessoas, saúda um futuro em que cada um saiba para que vive, e sonha com um tempo em que a Humanidade saiba dançar ao som de tambores diferentes dos tambores da guerra.

“Ele poderia ter sido um jovem Kurt Weill…”

Poderia. Que ótimo que ele escolheu ser Paul McCartney.

Código de Hamurábi

24. Se várias pessoas forem roubadas, então a comunidade deverá ..... e ... pagar uma mina de prata a seus parentes.

O Brasil na Copa de 54, na Suiça, quando eu ainda não havia reencarnado por aqui


Foi este o time desclassificado nas quartas (4 a 2 para os magiares): Castilho; Djalma Santos, Pinheiro e Nílton Santos; Brandãozinho e Bauer; Julinho, Didi, Índio, Humberto e Maurinho.
Quatro foram campeões mundiais em 58: Castilho (reserva de Gilmar), Djalma (reserva de Nilton de Sordi, jogou a final e foi eleito o melhor lateral direito daquela Copa), Nilton Santos (a Enciclopédia) e Didi (o príncipe etíope de Nelson Rodrigues). Em 62, Castilho - ainda na reserva de Gilmar -, Djalma - titular na direita -, Nilton e Didi foram bicampeões no Chile. Djalma está vivo e forte e, espero, salvo ledo e ivo engano, Nilton ainda vive, embora muito doente, parece que com com Alzheimer: fez 85 em 17 de maio, na clínica onde vive. Bauer, o Monstro do Maracanã, já falecido, havia jogado a Copa de 50; foi treinador do Colorado de Curitiba.

Na pista do factoide

Título original de reportagem publicada em Carta Capital, nesta sexta-feira 11. Enviada a muá pelo Chico Duarte (espie www.compaixaoefortaleza.blogspot.com).
Em itálico, obviamente, sou eu que escrevo.
Luiz Lanzetta, citado nesta e em todas as reportagens a respeito, um gaúcho de boa cepa, era editor de política do Jornal da Tarde, em 1989 (e na época casado com a bela Ana Terra, da Globo), quando fui "emprestado" ao jornal pela sucursal de Curitiba, escalado para cobrir o candidato Lula no segundo turno da primeira eleição presidencial direta depois da devolução do poder pelos militares. Lanzetta tinha a intenção de equilibrar o noticiário, então francamente pró-Collor. Não sei se me saí bem na missão, mas a parte que me coube foi executada com correção, sem partidarismo.
Pude testemunhar cenas explícitas de petismo - de alguns, mais por revolta diante do apoio descarado de seus veículos a Collor -, que muito constrangeram este provinciano repórter. No comício do Pacambu, no qual Mario Covas aderiu à candidatura Lula, havia dezenas de coleguinhas desfilando no palanque com bottons na lapela, cantando junto, erguendo o punho. Se já acho chato esse ufanismo e essa torcida escancarada e infantil da imprensa pelo Brasil na Copa, imaginem na política. Mas do lado do Collor não era diferente. O colega de JT que cobria a campanha collorida, cujo nome não citarei, não só torcia como confundia fontes, tipo Pedro Collor, com amiguinhos de juventude. Enfim, era assim e ainda é assim.
Voltando ao Lanzetta de 89, foi correto e leal, além de ótimo editor (tendo o Robson como escudeiro). Umas duas ou três vezes fomos, mais o Robson, ao Bar do Alemão - na Avenida Antarctica -, depois do fechamento, onde bebíamos e conversávamos sobre aquela eleição e o resto.
Luiz Lanzetta havia rodado e continuou a rodar todas as principais redações brasileiras, principalmente em Brasília, onde construiu sólida carreira e boa reputação. Não fosse isso, não teria assinado, por um bom tempo, o Informe JB, no tempo em que o JB era o JB.
NMos anos 90 (acho que em 95), a Lanza, empresa de Lanzetta, foi contratada pelo então prefeito Rafael Greca, que pretendia projetar sua imagem em Brasília. Depois de eleito deputado federal, acabou ministro de FHC. Em 2005, a Lanza Comunicação começou a cuidar de Beto Richa em nível nacional, a partir de Brasília, coração do fervo. Pelo que soube, a assessoria a Beto não continuou.
Agora, pesssoalmente, acho que botaram (gente do Serra ou do próprio PT) Lanzetta numa fria e o queimaram profissionalmente, tendo sido ele associado a espionagem e outras maracutaias. O ambiente de Brasília é péssimo, mas prefiro acreditar que Lanzetta pretendia fazer apenas a comunicação da campanha de Dilma, para o que fora contratado, e buscava tomar algumas precauções. Ficou no meio do tiroteio entre Rui Falcão e Fernando Pimentel. Espero e acredito, sinceramente, que vai superar essa e as demais que certamente virão.
Outro dia mandei a ele mensagem de solidariedade. Respondeu-me como amigo que é, confiante que tudo será esclarecido.
Luiz Lanzetta, o Lanza, repito, deve ter sido jogado no meio do foguetório. Deveriam ter chamado o Lanza da loja de fogos da Visconde, que deve entender mais disso do que qualquer outro do mesmo nome.
A seguir, a matéria de Carta Capital.

Nas últimas semanas, os eleitores brasileiros acompanharam o desenrolar de uma série de informações desconexas sobre um escândalo inexistente baseado em um dossiê fantasma a ser montado por uma equipe de arapongas jamais formada. Ainda assim, a história está longe de acabar. O tal dossiê, na verdade um livro sobre os bastidores do processo de privatização durante os governos de Fernando Henrique Cardoso, voltará a ser notícia depois da Copa do Mundo, provavelmente no fim de julho.

É o período mais provável para o autor do texto, o repórter Amaury Ribeiro Júnior, com passagens por alguns dos principais veículos de comunicação do País e colecionador de prêmios jornalísticos, entregar ao Ministério Público Federal as informações e documentos coletados por ele ao longo de dois anos de investigação. Em seguida, vai publicar a obra, 14 capítulos que o autor acredita serem capazes de abalar os alicerces do PSDB às vésperas das eleições de outubro.

Antes, porém, é preciso esclarecer as circunstâncias que, em 5 de abril, levaram a uma mesa do restaurante Fritz, na Asa Sul de Brasília, os cinco personagens de uma trama rocambolesca, cujo início ainda tem pontos obscuros. A partir desse encontro, CartaCapital buscou reconstituir os bastidores dos acontecimentos que resultaram na crise inaugurada a partir de uma reportagem publicada pela revista Veja em 29 de maio, mas costurada antes no submundo político brasiliense, graças, em parte, ao grau de amadorismo dos envolvidos na confusão e em grande medida à guerra eleitoral que se aproxima.

Na batalha de versões estabelecidas entre as partes envolvidas no escândalo do dossiê que ninguém viu, o primeiro a falar foi, justamente, o primeiro a cair, o empresário Luiz Lanzetta, dono da agência Lanza, responsável na campanha da pré-candidata Dilma Rousseff pela contratação de profissionais da área de comunicação, 14 ao todo. No fim de março, Lanzetta diz ter percebido a existência de vazamentos de informações de dentro do comitê do PT, instalado em uma casa no Lago Sul de Brasília. Nessa altura, havia se instalado uma clara divisão na área de comunicação. De um lado, Lanzetta, levado à campanha pelo ex-prefeito de Belo Horizonte Fernando Pimentel, amigo de Dilma Rousseff. De outro, o grupo do paulista Rui Falcão, igualmente próximo à ex-ministra.

Atribui-se o vazamento a essa luta interna pelo controle da área de comunicação na campanha. Tanto Pimentel quanto Falcão se dizem amigos fraternais e negam qualquer divergência ou briga por mais espaço e poder.

Preocupado com os vazamentos, Lanzetta procurou apoio de um velho conhecido de fora da campanha, Ribeiro Jr.. A ideia era contratá-lo para a equipe de Dilma Rousseff de forma a conseguir também, a partir do perfil profissional do repórter, informações sobre os movimentos do adversário. Até aí, nada de novo no front eleitoral brasileiro, onde investigações mútuas entre candidatos são tão comuns quanto a impressão de “santinhos” de campanha.

Ao saber das preocupações de Lanzetta, Ribeiro Jr. decidiu convocar uma fonte antiga, o sargento Idalberto Matias de Araújo, o Dadá, ex-agente da Secretaria de Inteligência da Aeronáutica (Secint). O araponga disse ao jornalista conhecer o nome certo para o serviço na casa do Lago Sul, Onézimo Sousa, ex-delegado da Polícia Federal e investigador com 30 anos de experiência. Decidiu-se marcar o citado almoço no restaurante Fritz. O quinto participante do encontro seria Benedito Oliveira Neto, empresário do setor gráfico e de eventos de Brasília, possuidor de contratos com o governo federal. Oliveira Neto teria sido convidado à reunião por Lanzetta para atuar como “testemunha”. Os dois também se conhecem de longa data.

Na versão de Lanzetta, sustentada por Oliveira Neto e Ribeiro Jr., Onézimo Sousa foi consultado somente sobre a montagem de um esquema de segurança interna do comitê da campanha petista para detectar de onde saíam os vazamentos e arranjar um jeito de evitá-los. Suspeitava-se, ainda, da existência de escutas telefônica e ambientais na casa. Segundo Lanzetta, Sousa os alertou de que era “antipetista”, mas engatou uma conversa sobre uma centena de dossiês que, segundo ele, estariam sendo produzidos por uma equipe encabeçada pelo deputado Marcelo Itagiba (PSDB-RJ) contra aliados da base do presidente Lula, principalmente do PT e do PMDB. “Ele disse que tinha sido do lado de lá, que conhecia esses caras todos”, afirma Lanzetta. O “antídoto” para os vazamentos apontados por Sousa, segundo o empresário de comunicação, seria um sistema de contraespionagem ao custo de 180 mil reais por mês. “Aí eu encerrei o assunto, me levantei e fui embora.”

A CartaCapital Sousa afirmou nunca ter oferecido serviço algum a Lanzetta ou a ninguém do PT. “Da minha parte, tenho como provar tudo que eu disse. Nunca citei o Itagiba. Fui ao restaurante, ouvi uma proposta indecente e saí”, contou o ex-delegado, em entrevista por telefone, na terça-feira 8, de um quarto de hotel localizado fora de Brasília, em local não revelado por ele. A proposta indecente seria a de investigar o candidato José Serra, interpretada por ele como ordem implícita de fazer grampos telefônicos nas linhas do tucano e de seus aliados políticos. Antes de sair do restaurante, o araponga deixou com Lanzetta um cartão de apresentação em que se lia apenas “Onézimo Sousa – Advogado – OAB-DF 13600”, seguido do endereço do escritório e dos telefones de contato.

“Estou com a consciência tranquila, porque foram eles que me chamaram. Até estranhei, porque não sou petista”, diz Sousa. Uma semana depois, o ex-delegado iria encontrar o mesmo cartão nas mãos do jornalista Policarpo Júnior, chefe da sucursal da Veja em Brasília. Como ele pode garantir ser o mesmo cartão? “Fiz uma marca de identificação nele.” Passados alguns dias da reunião no Fritz, uma equipe de repórteres da Editora Abril já estava no encalço dos participantes do almoço. Ou seja, de algu-ma forma, e com bastante rapidez, a informação havia sido vazada para a imprensa. O delegado passou a achar que o vazamento partira de alguém que esteve no encontro no restaurante.

Sousa, a quem Policarpo Jr. conhece há quase duas décadas, foi um dos primeiros a ser contatados. Quando viu o cartão de visita nas mãos do repórter, perguntou como ele havia conseguido o papel. “Ele me disse que tinha vindo da casa”, conta o ex-delegado. “Eu entendi que a Veja tem alguém lá dentro”, afirma. Por isso mesmo, concluiu que havia caído em uma armadilha, principalmente quando soube, logo depois, que também Ribeiro Jr. tinha sido entrevistado.

Por sete semanas, o staff da campanha petista ficou na expectativa sobre o que poderia ser publicado sobre o almoço do restaurante Fritz. Portanto, ao menos os mais bem informados integrantes do comitê sabiam da preparação da reportagem. Nesse intervalo, além de Sousa e Ribeiro Jr., o deputado Rui Falcão foi procurado pela revista. “Eu sabia que o assunto estava no ar. Mas eles não registraram nenhuma declaração minha”, diz Falcão.

Em 29 de maio, uma matéria truncada foi publicada em Veja com foto e declaração do ex-delegado Sousa, mas sem nenhuma linha sobre o livro de Ribeiro Jr., o que, obviamente desmontaria a tese do dossiê tão alegremente sustentada pela mídia nos últimos dias, ainda que, a exemplo do suposto grampo contra o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes (outra contribuição da revista da Editora Abril ao jornalismo “investigativo” à brasileira), faltem alicerces para manter a versão de pé.

Na iminência da publicação, Sousa decidiu enviar uma carta à revista, reproduzida na internet, onde se dizia “obrigado a manter o devido sigilo” sobre conversas com clientes e informou ter sido apenas sondado pelos petistas, apesar de não ter aceitado o serviço por “divergir cabalmente quanto à metodologia e ao direcionamento dos trabalhos a serem ali executados”. Na mesma semana, ele voltaria a falar com Policarpo Júnior, mas desta vez para fazer estardalhaço.

Em 5 de junho, Veja publicou uma entrevista com o ex-delegado, na qual ele soltou o verbo contra Lanzetta e Ribeiro Jr. Acusou o grupo petista de querer grampear Serra e lançou-se numa estratégia de virtual suicídio profissional, ao abrir as intenções de um cliente, mesmo não contratado. No mesmo dia, Lanzetta foi obrigado a se demitir da campanha de Dilma Rousseff. O ex-delegado agiu com o fígado, sobretudo, porque passou a ser acusado de ter sido cooptado pelos tucanos e, no passado, ter participado do núcleo de inteligência de Serra no Ministério da Saúde.

Não é verdade. Sousa jamais trabalhou com o deputado Itagiba ou no Ministério da Saúde, ou mesmo em ambientes comuns na Polícia Federal, onde ambos foram delegados. Quando na PF, Sousa fez fama como investigador profissional e corajoso, sobretudo no combate a traficantes de drogas e de armas no Rio de Janeiro, numa época em que coleta de provas e infiltração entre bandidos valiam mais que escutas telefônicas. Aposentado em 1995, fez carreira de investigador particular na Control Risks, uma renomada agência de investigação inglesa, com filial em São Paulo. De volta a Brasília, montou um escritório de advocacia no Setor Comercial Sul, embora ainda continuasse, eventualmente, a fazer serviços de investigação para uns poucos clientes. O que o levou a corroborar a tal história de arapongagem é uma pergunta que, talvez, só o tempo seja capaz de esclarecer.

Ribeiro Jr. também diz ter como provar “diálogo por diálogo” da conversa ocorrida no restaurante Fritz. Supõe-se, portanto, que tanto ele como Sousa tenham gravado tudo sem que um notasse o que o outro fazia. É certo que um dos dois está blefando, mas Ribeiro Jr. tem a seu favor o depoimento dos outros presentes à mesa, inclusive o sargento Idalberto, embora este não esteja nem um pouco disposto a aparecer em público. Em 2008, Dadá foi acusado de participar ilegalmente da Operação Satiagraha, ao lado do delegado Protógenes Queiroz, mas negou ter feito parte da ação.

Ribeiro Jr. alega ainda ter tido outro encontro com Sousa, 15 dias depois do almoço no Fritz, em uma confeitaria de Brasília, na presença do sargento Dadá. Na ocasião, conta o jornalista, o ex-delegado estava furioso por causa do vazamento da conversa com Lanzetta e o acusou de ter levado o assunto para a imprensa. “Ele achou que nós havíamos passado o cartão dele para a Veja”, explica Ribeiro Jr. “Mas é certo que o cartão dele foi roubado dentro da campanha. Também roubaram um arquivo do meu livro, colocado num computador da casa, daí o pânico (dos tucanos) em relação ao ‘dossiê’.” Sousa nega ter participado desse segundo encontro.

Além disso, Ribeiro Jr. acredita que algum hacker conseguiu entrar em seu notebook enquanto ele esteve hospedado em um hotel de Brasília e retirado um arquivo que só ele tinha: uma reportagem encomendada pelo jornal O Estado de Minas, mas jamais publicada, sobre as investigações que resultariam no livro intitulado Os Porões da Privataria e que conta com alguns trechos publicados na internet. A reportagem não publicada seria o tal “dossiê”. Diz o repórter: “Também roubaram relatórios dos custos- da casa onde fica o comitê de campanha de Dilma. Quando Veja ligou para o Lanzetta, já tinha tudo na mão”.

Enquanto o staff de Serra aproveitou o episódio para tentar consubstanciar uma aura de vítima ao redor do candidato tucano, a história provocou algumas mudanças no comitê petista. Aparentemente, o ex-ministro Antonio Palocci e o grupo paulista reforçaram sua posição na estrutura. Já Pimentel, obrigado a ceder a vaga de candidato ao governo de Minas Gerais ao peemedebista Hélio Costa, tende a se afastar um pouco de Brasília, até para cuidar de sua candidatura ao Senado.

A oposição está disposta a manter o tema aceso no noticiário, embora até o momento os resultados práticos da cruzada sejam quase nulos. Uma comissão mista no Congresso aprovou na quarta-feira 9 o convite a Sousa e a Dadá para deporem. No dia anterior, em viagem a São José dos Campos (SP), Dilma Rousseff negou que Pimentel tenha perdido espaço na campanha e voltou a chamar de “leviandade” a acusação de que alguém de sua equipe de campanha tenha preparado um dossiê anti-Serra. A candidata estava acompanhada de Palocci.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

O maracanazo - 1950

Copa de 1950, no Brasil. Na final, contra o Uruguai, a pátria de chuteiras naufragou. Imperdível a leitura de "Anatomia de uma derrota", de Paulo Perdigão.
Mas ficam as boas lembranças de um período importante de nossa história recente.
Pra quem não lembra: Barbosa; Augusto e Juvenal; Bauer, Danilo e Bigode; Friaça, Zizinho, Ademir, Jair e Chico.

Microconto 8 de 100

No dia em que completo 56 anos de idade, tomei três decisões: parar de fumar, parar de beber e parar de viver. Ainda não decidi o que fazer primeiro, mas, obviamente, se executar a terceira opção, terei resolvido todas as escolhas – ou desistências.

domingo, 6 de junho de 2010

Charles Miller e Luís Fabiano

Boa matéria tirada da Veja.
Charles William Miller, filho de um escocês que chegou ao Brasil para ajudar a administrar a estrada de ferro Santos-Jundiaí e de uma brasileira de família inglesa, retornou de uma viagem de estudos a Southampton, na Inglaterra, no fim de 1894, com peças curiosas na mala. Segundo relato do escritor e historiador John Mills, Miller trouxe na bagagem um livro de regras do Association Football, duas bolas de capotão, um par de chuteiras e uma bomba de ar. Em 14 de abril de 1895, no campo da Várzea do Carmo, em São Paulo, ele organizaria a primeira partida de futebol oficial do Brasil, entre as equipes The GasWorks Team e The São Paulo Railway Team.

Luis Fabiano Clemente tinha 13 anos de idade quando foi levado para treinar em seu primeiro clube, o Guarani de Campinas. Ele era um dos grandes destaques de um campinho lindamente apelidado de Buracanã. Criado pela mãe e pelo avô materno, Benedito, o Ditão, dava trabalho na escola e logo se empregou em uma oficina mecânica. O adolescente inquieto que se tornaria cen-troa-vante da seleção de Dunga na África do Sul se alegrava mesmo era no Buracanã praticando o jogo que Charles Miller, falecido em 1953, apresentara ao Brasil 100 anos antes e que foi aqui adotado não apenas como esporte, mas como religião nacional.

Milhões de brasileiros de seis gerações devem ao filho de escocês as emoções insubstituíveis proporcionadas pelo futebol. Centenas de craques saíram dos Buracanãs para a glória, a riqueza e a fama mundial. Para celebrar o encontro, na verdade, o reencontro de Luis Fabiano com Charles Miller e a África, de onde saíram os antepassados comuns deles – e de toda a humanidade –, VEJA decidiu valer-se dos mais modernos métodos da genética para traçar as rotas migratórias das correntes humanas que produziram o artilheiro e o pioneiro do futebol.

VEJA pediu a dois descendentes do pioneiro – Charles Rudge Miller, seu neto, e Angela Susan Fox Rule, sobrinha-bisneta – e a Luis Fabiano que colhessem material genético e permitissem que ele fosse estudado em laboratório. Todos concordaram, e as células (raspadas da parte interna da bochecha) foram submetidas ao teste conhecido como DNA de ancestralidade pelo laboratório Gene, de Belo Horizonte, um dos mais reputados do mundo. Os avanços desses testes de DNA – os kits podem ser encomendados pela internet – fizeram da antropologia genética um dos métodos mais precisos e rápidos de investigação da evolução e das rotas migratórias da humanidade a partir de seu berço africano.

A Copa do Mundo da África do Sul, a primeira no continente negro, está eivada de simbolismos – a começar pelo fascínio de ser realizada em um país que, até vinte anos atrás, abrigava uma das mais violentas atrocidades do século XX, o regime racista do apartheid, derrotado pela liderança de um personagem mítico, Nelson Mandela. É fascinante também imaginar que jogadores e torcedores das 32 seleções estejam com a atenção voltada para o continente onde o Homo sapiens surgiu. Ao esmiuçar a jornada genética de Charles Miller e Luis Fabiano – um branco, genuinamente europeu, outro mulato, descendente de escravos africanos –, esta reportagem demonstra a estupidez da "ciência das raças" que, no século XX, embasou o mal absoluto do Holocausto com seus 5 milhões de vítimas "biologicamente inferiores" e deu sustentação ao apartheid sul-africano. Hoje, a melhor ciência informa que as raças são variações cosméticas do núcleo genético humano, incapazes sozinhas de determinar a superioridade de um indivíduo ou grupo sobre outros. Diz Sérgio Pena, médico fundador do laboratório Gene: "Não somos todos iguais, somos igualmente diferentes".

Para desenhar o mapa que ilustra esta reportagem, foram usados os resultados dos exames de ancestralidade paterna dos personagens. VEJA encomendou também exames que permitem traçar a rota das linhagens maternas de Luis Fabiano e Charles Miller. A linhagem materna é obtida pelo estudo das mutações no DNA mitocondrial que cada pessoa herda apenas da mãe. Ela é menos precisa que as marcas deixadas pelo caminho evolutivo no cromossomo Y, definidor do sexo masculino. A ancestralidade materna mostra que Luis Fabiano teve uma tataravó da etnia banto, que é predominante na maior parte do continente africano. A linha materna de Charles Miller remonta ao que parece ser a origem comum de quase 100% do DNA mitocondrial, uma Eva mitocondrial africana que viveu entre 11 000 e 15 000 anos atrás.

Em 1972, o biólogo americano Richard Lewontin demonstrou experimentalmente que 85,4% da diversidade dos genes humanos ocorriam entre indivíduos de uma mesma população. Ou seja, quando se examina o núcleo genético, um sueco pode ser mais diferente de outro sueco do que de um indivíduo negro de origem africana. Sérgio Pena faz um curioso raciocínio: "Imagine que um cataclismo nuclear destruísse toda a população da Terra, deixando ilesa apenas a população africana. O que nos sobraria em termos de riqueza genética? Quase tudo, porque as populações africanas, vistas muitas vezes como homogêneas, são bastante diversificadas. No exemplo catastrófico que estamos utilizando aqui, 93% da diversidade total da humanidade seria preservada. Se apenas a população zulu da África do Sul sobrevivesse, mesmo assim 85% da variabilidade da raça humana estaria presente nos genes dos indivíduos".

O italiano Luigi Cavalli-Sforza, geneticista que primeiro organizou uma árvore genealógica da espécie humana e a relacionou com a evolução das línguas, acredita que sempre fomos induzidos pela aparência a considerar que "as raças são puras (isto é, homogêneas) e muito diferentes entre si". Escreve ele em Genes, Povos e Línguas: "É difícil encontrar outro motivo para explicar o entusiasmo dos filósofos e cientistas políticos do século XIX, como Gobineau e seus seguidores, pela preservação da pureza racial. Como só podiam estudar os traços visíveis na época, não era absurdo imaginar que raças puras existissem. Hoje, porém, sabemos que as coisas não são bem assim e que seria praticamente impossível criar uma raça pura. Para obter com efeito uma ‘pureza’ parcial (ou seja, uma homogeneidade genética que nunca ocorre espontaneamente em populações de animais superiores), precisaríamos de, no mínimo, vinte gerações de endogamia".

Charles Miller e Luis Fabiano são diferentes na aparência, mas não no seu coração genético. O estudo comparativo do DNA de ambos mostra que os ancestrais deles começaram juntos a grande aventura migratória da humanidade há cerca de 50 000 anos. Quase 5 000 anos depois, já fora da África, o último ancestral comum de ambos deu origem a descendentes que escolheram rumos diferentes na vida. Eles começaram a carreira-solo com absolutamente a mesma bagagem genética. Como é sabido, o DNA é uma molécula capaz de se duplicar – ou seja, fazer uma cópia de si mesma. Como toda reação bioquímica, a duplicação do DNA não produz cópias absolutamente perfeitas. O processo sofre influên-cias externas de origem química, da radiação solar e de outras fontes radioativas. Essas pequenas imperfeições tendem a ocorrer seguindo determinado padrão. Elas vão se acumulando com o tempo e tornam-se variações passadas como herança genética para os descendentes, criando uma linhagem. O isolamento entre as populações que escolheram rotas migratórias diferentes impede que as variações acumuladas por um grupo sejam compartilhadas com o outro – o que, a longo prazo, eliminaria as maiores diferenças pela miscigenação e as duas linhagens se fundiriam em uma só.

As diferenças entre grupos isolados geograficamente tendem a se acentuar também pelas razões expostas por Charles Darwin e seus sucessores no estudo da Teoria da Evolução. As variações genéticas ocorrem ao acaso e, com o tempo, algumas se tornam predominantes em uma população porque elas se mostraram vantajosas para aquela espécie naquele determinado ambiente. Tome-se o exemplo das peles claras e escuras. O Homo sapiens tinha uma população inteiramente formada por indivíduos de pele escura quando saiu da África. As variações genéticas que tendem a produzir pele clara certamente ocorreram indistintamente em todos os contingentes humanos. Mas elas só se firmaram como mutações vantajosas para os grupos humanos que foram povoar as latitudes mais baixas do globo terrestre, onde o efeito protetor da melanina, o pigmento que dá cor escura à pele, é desnecessário – e até prejudicial por filtrar a fraca insolação das regiões frias, impedindo a absorção da vitamina D garantida pelos raios ultravioleta da luz solar.

"Os resultados dos exames de ancestralidade de Charles Miller e Luis Fabiano são bonitos porque confirmam, cientificamente, o que imaginávamos encontrar", diz Sérgio Pena. É uma beleza, do ponto de vista da antropologia genética, e demonstra a utilidade de entendê-la e esperar que, um dia, ela ajude a desvendar o enigma clássico da condição humana que é a eterna desconfiança do outro, do diferente, do estrangeiro com sua aparência, cultura e religião estranhas. O DNA nada sabe desse sentimento. No seu coração genético, a espécie humana é tão mais forte e sadia quanto mais variações apresenta. Se para a humanidade o inferno sempre foram os outros, para o DNA o inferno é o fim das diferenças.

Driblar, para não fugir da linha genética, está no DNA do brasileiro. Mas quem introduziu o recurso no Brasil foi um escocês quase desconhecido por aqui, embora celebrado por lá. Archie McLean, funcionário de uma tecelagem escocesa enviado ao Brasil em 1912 para trabalhar, ganhou fama entre os praticantes do nascente esporte bretão pela velocidade com que passava os pés por cima da bola e pela agilidade com que trocava passes com o companheiro ao lado, nos primórdios da tabelinha. Conhecido como A Pequena Gazela, pelo porte dentro de campo, é personagem injustamente secundário. McLean aparece numa fotografia da seleção paulista de 1914 ao lado de Arthur Friedenreich – não se tem notícia de que tenha sido identificado, e a rara imagem sempre foi usada para mostrar o brasileiro de origem alemã. "McLean surpreendia com seu estilo de jogo, habilidoso, o avesso do que vigorava na Inglaterra e na Escócia", diz John Mills, autor da biografia de Charles Miller. Ali, com chuva em profusão, as equipes eram forçadas a mandar a bola para o alto, na gênese do chuveirinho, que marca o futebol inglês desde sempre (embora tenha melhorado muito com a chegada de jogadores e treinadores estrangeiros). A bola alçada foi recurso inovador porque era impossível fazê-la correr na grama, encharcada. No futebol, tal como na evolução de nossa espécie, o ambiente faz a diferença e molda a vida. É o darwinismo aplicado ao esporte mais popular do mundo.

Em outros palcos

Shakespeare
Em A Comédia dos Erros, o maior de todos os dramaturgos colocou o futebol em campo na fala do escravo Drômio: "Serei, acaso, redondo assim, para me dardes pancada sem parar, como se eu fosse uma bola de futebol?"

É mais fácil identificar o DNA que nos remete à origem da humanidade que o DNA dos primórdios do futebol. Há muita controvérsia, embora os historiadores recentemente tenham chegado a algum acordo. Há relatos de uma modalidade semelhante por volta de 3 000 anos antes de Cristo, entre os militares chineses. Depois das guerras, como modo de celebração, eles formavam equipes para chutar cabeças decepadas de soldados inimigos. Com o tempo, as cabeças foram sendo substituídas por bolas de couro revestidas de cabelos. No Japão, um pouco mais tarde, nasceu o kemari, com oito jogadores para cada lado e, pela primeira vez, redes feitas de fibras de bambu. Depois, já no século I antes de Cristo, foi a vez dos gregos de Esparta, que usavam a redonda feita de bexiga de boi cheia de areia ou terra.

Espírito de seu tempo, as versões antigas do futebol caminhavam de mãos dadas com a sociedade. Na Idade Média, violência era a regra, como se todos fossem zagueiros portugueses a caçar Pelé na Copa de 1966. O soule (ou harpastum) tinha 27 militares de cada lado. Eram permitidos socos, pontapés e rasteiras. O gioco del calcio italiano, também medieval, tornou-se popular por ser praticado em praças públicas, e não mais em campos escondidos. Na Inglaterra, mãe do futebol, o rei Eduardo II, assustado com a agressividade, proibiu a brincadeira, em 1314, que renasceria entre os nobres, agora sem pancadaria.

Era o início da civilização no futebol – ainda que, mesmo hoje, os brancos sul-africanos usem um provérbio segundo o qual o rúgbi, esporte de sua predileção, "é um jogo criado pelos hooligans e jogado por nobres, enquanto o futebol é um jogo criado por nobres e jogado por hooligans". Em A Comédia dos Erros, escrita por volta de 1592, William Shakespeare pôs o futebol em campo como metáfora. Em uma das cenas da peça, o escravo Drômio de Éfeso reclama dos abusos aos quais o submetem. "Serei, acaso, redondo assim, para me dardes pancada sem parar, como se eu fosse uma bola de futebol? Sem mais nem menos, me aplicais pontapés. A durar isso, tereis de me mandar forrar de couro." Apenas no século XVII, finalmente surgiram as regras muito próximas às que vingaram até hoje.