sábado, 29 de outubro de 2011

Como tirar ouro da calça cagada

Já publiquei no FB e no tuíter (estou ficando moderno).
O judoca brasileiro Felipe Kitadai teve um desarranjo intestinal e borrou a calça do gi (pronuncia-se gui e este é o nome japa do uniforme dos lutadores de "quimono") na semifinal de hoje no judo, categoria até 60 quilos, no Pan do México. Ganhou. Foi à final, lavou a bunda e, de gi limpinho, bateu o mexicano na decisão.
Mais um ouro no esporte de luta que mais dá medalhas ao Brasil. Meu querido karate chega perto.
É pra dizer que o lutador não se rende, nem na mais humilhante situação. Imagine cagar-se em público, num campeonato transmitido pela TV.
Kitadai merece minha admiração.
Se fosse numa luta de vida ou morte você se renderia - e morreria - se largasse um pum errado?
Muitos anos atrás, Luiz Shinohara, hoje técnico da equipe brasileira masculina, disputava um campeonato importante (acho que era um Pan, mas não tenho certeza) quando sentiu-se mal antes de uma luta e falou ao treinador, seu pai, o mestre 9.º dan (acho que já é 10.º) Massao Shinohara, que temia borrar a calça do gi na luta. Pensava em desistir para ir ao banheiro (o regulamento não permite esperas desse tipo), o que daria WO para o adversário.
O mestre ordenou: "Pois vá e lute. Se tiver que cagar no gi, cague. Mas lute."
Shinohara filho segurou o intestino, lutou e venceu.
Kitadai (ninguém lembra da história de Shinohara, só eu, ele e os arquivos da época) nem teve tempo de consultar seu técnico Shinohara filho, o cagão primeiro. Ou será que consultou?
Pois cagou-se e venceu.
Na luta você não pede licença pra espirrar, coçar-se ou largar um pum. Quanto mais para sair e ir ao banheiro.
James Fixx, em seu guia de corrida, conta a história de uma maratonista que teve desarranjo e continuou correndo. As pessoas jogavam-lhe toalhas molhadas e copos de água e ela continuou - cagando e se lavando. Não me lembro direito do trecho do livro, mas acho que é finlandesa e chegou entre as primeiras. (Teve um brasieiro que correu pra moita e chegou, mas não me lembro da história e não vou chutar aqui).
Não importa: poderia ter chegado em último.
O bacana é que o atleta se supera e mesmo com a natureza complicando, deixa de lado a vergonha e continua na luta.
Tenho inveja do Kitadai. Nos meus tempos de sofrível karate-ka, pediria licença ao companheiro para ir ao banheiro.
Mas aprendi. Hoje, nas aulas de jiu-jitsu, em que se espreme o corpo o tempo todo, é preciso ter alimentação leve, mas peidar, humanamente peidar, mesmo diante de 30 marmanjos e moças, é normal.
Então, minhas homenagens ao Felipe Kitadai.
O marrom no gi na semifinal virou dourado na final.
Só não vale peidar no elevador, pessoal. Aí é falta de educação mesmo.

Inimigo, pero...

Quase nunca leio o colunista Reinaldo Azevedo na Veja on-line porque acho que ele é raivoso demais e, em sua estupidez sardônica, mais ofende do que critica. Hoje, porém, vejo-o elegante, sincero, solidário com o ex-presidente Lula, sua vidraça favorita. Republico aqui seu texto de hoje na Veja (http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/), de uma gentileza admirável. Ao final, chuta a canela do Lula, claro. Mas é de se ler - em se tratando de quem escreve - como lágrimas de esguicho, como diria Nelson Rodrigues, que se vivo fosse bateria no companheiro como se fosse o zagueiro Píndaro.
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O câncer não é instrumento de vingança política, não é uma lição de vida, não é um livro didático! Ele só ensina que é preciso vencê-lo. Nada mais!
Eu espero, de verdade!, que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva se recupere plenamente. E peço aos leitores que sejam comedidos ao relacionar críticas de natureza política ao estado de saúde do petista. Cortei alguns comentários que me pareceram além do aceitável, o que não quer dizer que eu concorde com muitos outros que foram publicados. A doença de Lula não pode cercear a liberdade de expressão, mas costumo apelar, em momentos assim, a uma palavra que me é muito cara: decoro. Não existe decoro sem ponderação.

Boa parte do que Lula representa, a meu juízo, tem de ser vencido se quisermos um país responsável, mas é o amadurecimento da sociedade brasileira que tem de lograr esse propósito. Que ele continue com saúde para que possa ser enfrentado por aquilo que pensa, diz e faz. Repito aqui, pois, a recomendação que fiz por ocasião da doença da então ministra Dilma Rousseff. Sim, foram os petistas a transformar o câncer da agora presidente em ativo eleitoral, o que apontei aqui. Marco Aurélio Garcia chegou a sugerir que aquilo poderia render votos. Talvez façam o mesmo com Lula, tão logo ele esteja bem, sendo apontado como a nova Fênix nos palanques de 2012. Hugo Chávez leva ao paroxismo a exploração vigarista de seu mal. Se os petistas repetirem a dose, cumpre denunciá-los, como denunciei a manipulação no caso Dilma. Mas nada disso deve levar os que não simpatizam com o petismo a cruzar a linha do bom senso e do bom gosto. Comportamento de petista não é um padrão que se deva usar para balizar o nosso próprio comportamento.

Já escrevi isso aqui e lembro ainda uma vez. Quando extraí dois tumores do crânio, em 2006, conheci de perto as piores baixezas — e, de certo modo, conheço ainda. Basta eu informar aqui que me ausentei por algum tempo ou que atrasei um pouco a postagem porque tinha ido ao médico, e lá vem a corrente dos sórdidos, fazendo sempre os piores votos: os delicados pedem a minha morte; os brutos não são tão generosos…

Nada disso, minhas caras, meus caros! Somos gente de outra natureza. Naquele 2006, uma pessoa que eu considerava amiga, mas com quem mantinha severas divergências, enviou-me, um dia antes da minha internação, um e-mail — que ela deve ter julgado muito terno e amigo —, em que misturava as nossas diferenças ideológicas com o meu estado de saúde. Eu sou cristão, fazer o quê? Confesso que já tentei renunciar à fé, mas não consegui. Consolar os aflitos é coisa que voa nas asas dos anjos. Fazer votos para que um doente “saia melhor” e “mais lúcido” do sofrimento cheira a enxofre. Nunca mais foi minha amiga, nunca mais mereceu nada além do meu desprezo e do meu asco.

Que Lula se recupere, sim! Para que possamos dizer a ele que está errado em muita coisa. Para que sirva de referência, saudável e lúcida — dada a lucidez possível de seu pensamento —, de uma porção de coisas que não queremos para o Brasil.

O câncer não é instrumento de vingança política, não é uma lição de vida, não é um livro didático! Ele só ensina que é preciso vencê-lo. Nada mais!

A educação pelo câncer
Enviam-me aqui um texto de Gilberto Dimenstein, um dos monopolistas da bondade de que a nossa imprensa anda cheia. O título de sua crônica é este: “Câncer de Lula vai servir de lição”. Santo Deus! Segundo o jornalista, “o país vai conhecer, como nunca conheceu, os efeitos no cigarro, apesar de tantas campanhas realizadas há tanto tempo.” Ele lembra que o tumor do ex-presidente apareceu “justamente na laringe, por onde passa a habilidade de Lula em convencer as pessoas em seus discursos.” Achou que era pouco e avançou na conclusão: “Infelizmente é desse jeito, com as pessoas sentindo-se próximas e vulneráveis diante de uma ameaça, que se consegue mudar atitudes.”

Dimenstein lembra aquele meu interlocutor, que passou a merecer o meu desprezo. O sentido de sua crônica horrível é este: “Viu? Quem mandou fumar?” Não pára aí: “Justo na laringe, hein???” E encerra com um norte moral: O terror é didático.

É claro que já antevejo todas as pautas que vão pipocar sobre o câncer de laringe e sua relação com o cigarro. Dado o contexto, fazem sentido. Lula é personalidade pública. O que acontece a pessoas como ele tem sempre grande repercussão. Mas eu realmente repudio essa tentativa de se ver a doença pelas lentes de uma espécie de moral, ainda mais quando se conclui que o medo ilumina a razão.

Em síntese: Lula não está doente porque quer, não está doente porque merece, não está doente para ter uma lição de vida. Estará hoje nas minhas orações. Doenças não tornam a gente nem melhor nem pior. Elas só nos ensinam que é preciso vencê-las. O resto é mistificação de tolos que acreditam na didática ou na pedagogia do tumor. Por alguma razão, certo cretinismo pretende que um nódulo vai ensinar aos doentes o que não lhes ensinaram nem Deus nem a ciência.

Torço para que Lula saia incólume dessa. Força aí, meu Apedeuta!

Zezé di Camargo e Luciano

As duplas breganejas são, para mim, o que há de quase pior na música brasileira. Pior é o pancadão dos vileiros, com seus concursos de som mais alto naqueles carros podrões, como ouço aqui ao lado, nos cafundós onde vivo com minha nega.
O sertanojo, agora sertanejo universitário - genial jogada de marketing pra dizer que isso não é coisa de ignorantes - ofende a cultura brasileira, agride o sertanejo de Tonico e Tinoco, Tião Carreiro e Pardinho, Renato Teixeira e vários e até o oportunista do Sérgio Reis ("Se você pensa que meu coração é de papel / não vá pensando, pois não é...").
Tenho sincera piedade intelectual de quem gosta de ouvir esse tipo de música (???), mas não posso fazer nada.
O Estado poderia, sim. E deve, por obrigação constitucional, sim.
Massificar a boa cultura, levar a boa música, o bom teatro às camadas ditas menos favorecidas.
O ingresso para o show do Chico está caro? Por que o Estado não banca o Chico - e ele vale, oh, Zeus - em praça pública, como eu vi em 66, quando ele veio a Curitiba só para cantar "A banda" na Marechal Deodoro e juntou mais gente que o papa?
Sociólogos já disseram que, graças ao plano real, os pobres passaram a ter aparelho pra tocar CD, ir ao cinema, comer no Mac e tal. Com Lula, a coisa melhorou: aqui pertinho de casa o vigia de uma construção, que mora num barracão com a família, tem carro e - já vi pela porta aberta nos finais de semana - TV de plasma, computador pras crianças.
Fico feliz mesmo com e por isso.
Mas o Brasil, ao promover os menos favorecidos, esqueceu-se de dar-lhes suporte e orientação: econômica, para que aprendam a poupar; de saúde, para que se cuidem e apareçam no dentista, frequentem os postos médicos, etc.; pra não alongar demais, cultural, até negociando com as rádios e TVs para que tragam essa gente ao bom nível e não desçam a qualiade de sua programação para o nível de quem está vindo lá de baixo.
Parece óbvio, não? Mas não foi isso que aconteceu.
Não, não quero que o Luciano se foda. Ele é produto desse desnível. Milionário, nem sabe o que faz da vida. Talvez nunca tenha lido um livro inteiro (fora o roteiro de Filhos de Francisco, produto da Carolina Kotscho, filha do Ricardo idem).
Quero que o Luciano se recupere e volte a cantar ao lado do irmão Zezé. Quero que Mirosmar e Welson (é o nome deles) sejam felizes e gastem um pouco de sua fortuna com a educação dos filhos.
O que o Xororó fez com a Sandy, uma lady que ficou rica na breguice e hoje encanta a todos cantando jazz em pequenos shows em São Paulo.
Fico triste. O Brasil de Noel, Ismael, Nelson Cavaquinho, João e Aldir, Paulinho, Edu, Tom, Sérgio Ricardo, Chico e tal não merece tanta breguice.
Sorte ao Luciano, é o que digo solidariamente humano.
E sem carreira solo dos filhos de Francisco. Eu não mereço.
P.S.: Eu sei que o Guairão estava lotado de gente com grana. Tinha muito bacana lá. Mas esses não têm jeito. Que enfiem suas picapes barulhentas a diesel, suas casas com piscina em condomínio fechado, suas mulheres em salões de beleza (ou de feiúra) no Batel, seus filhos idiotas quebrando tudo nas baladas da Bispo Dom José, suas filhas fazendo sacanagem nos carrões dos namorados. Esses serão bregas forévis. Desses, tenho pena.

Suerte, companheiro

Lula - e os brasileiros - soube hoje que tem um câncer na laringe, provavelmente resultante de seus humanos excessos com o tabaco (cigarrilhas são piores que os cigarros comuns) e o álcool.
Sou da teoria segundo a qual - eu que criei - o humano nasce com predisposições genéticas assim:
1 - Se você fumar e beber, ou só fumar, ou só beber, vai produzir câncer em seu organismo e, por consequência, se não for salvo a tempo, vai morrer;
2 - Se você fumar e beber, ou só fumar, ou só beber, vai produzir câncer em seu organismo e, por consequência, mesmo tratado, vai morrer;
3 - Se você fumar e beber, ou só fumar, ou só beber, não vai produzir câncer em seu organismo e vai morrer um dia por outras causas;
4 - Se você não fumar e não beber, não vai produzir câncer em seu organismo e vai morrer um dia por outras causas;
5 - Se você não fumar e não beber, vai produzir câncer em seu organismo e, por consequência, vai morrer se não for salvo a tempo;
6 - Se você não fumar e não beber, vai produzir câncer em seu organismo e, por consequência, vai morrer, mesmo sendo tratado a tempo;

Nascemos programados em nosso DNA. O diabo é saber se estamos programados para morrer de câncer se fumarmos e/ou bebermos ou se vamos morrer de câncer mesmo sem fumar e sem beber. Se a medicina pode nos salvar ou se não tem jeito em qualquer circunstância.

Minha teoria não absolve fumantes e bebentes, lógico. Melhor não fumar e beber só de vez em quando.

Mas minha teoria é instigante, não?

Pra dizer, ao final e ao cabo, que torço sinceramente pela recuperação de Lula. E de Sócrates. E de Aldir Blanc.

Torço pelos homens de bem.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Maria Bethânia - Cântico Negro (1982)

Cântico negro

Este poema de José Régio descobri-o num show de Paulo Gracindo e Clara Nunes, que do nada nos iluminam, no show "Brasileiro, profissão: esperança", criado para homenagear Dolores Duran e Antônio Maria - dois pudins gordões geniais. Até hoje não sei por que escolheram - ou Paulo Gracindo escolheu - o poema do genial portuga José Régio.
Eu estava na plateia do Guairão, ainda garoto, em 1975, e aquilo me arrepiou, me deixou mal, parecia que havia baixado o santo no Paulo Gracindo. Foi das mais geniais interpretações que vi nesta encarnação - e olha que vi coisa nas anteriores.
Agora descobri que tenho um leitor, que tempos atrás me perguntou onde encontrava o poema.
Pois eis o porre.
Cântico negro em duas geniais - e diferentes - declamações, aí abaixo.
E agora, pra você exercitar, as palavras.
Drummond, Bandeira e João Cabral, gênios da raça, que me perdoem (mais Mário Quintana, Ferreira Gullar e outros poucos), mas este é meu poema favorito.
Saboreiem:

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!


José Régio, pseudônimo literário de José Maria dos Reis Pereira, nasceu em Vila do Conde em 1901. Licenciado em Letras em Coimbra, ensinou durante mais de 30 anos no Liceu de Portalegre. Foi um dos fundadores da revista "Presença", e o seu principal animador. Romancista, dramaturgo, ensaísta e crítico, foi, no entanto, como poeta. que primeiramente se impôs e a mais larga audiência depois atingiu. Com o livro de estréia — "Poemas de Deus e do Diabo" (1925) — apresentou quase todo o elenco dos temas que viria a desenvolver nas obras posteriores: os conflitos entre Deus e o Homem, o espírito e a carne, o indivíduo e a sociedade, a consciência da frustração de todo o amor humano, o orgulhoso recurso à solidão, a problemática da sinceridade e do logro perante os outros e perante a si mesmos.

Cântico negro por João Villaret

Paulo Gracindo

Aqui ele recita "Cântico negro", do gênio portuga José Régio. Descobri ter um leitor -que me pediu.

Código de Hamurábi

137. Se um homem quiser se separar de uma mulher ou esposa que lhe deu filhos, então ele deve dar de volta o dote de sua esposa e parte do usufruto do campo, jardim e casa, para que ela possa criar os filhos. Quando ela tiver criado os filhos, uma parte do que foi dado aos filhos deve ser dada a ela, e esta parte deve ser igual a de um filho. A esposa poderá então se casar com quem quiser.
138. Se um homem quiser se separar de sua esposa que lhe deu filhos, ele deve dar a ela a quantia do preço que pagou por ela e o dote que ela trouxe da casa de seu pai, e deixá-la partir.
139. Se não tiver havido preço de compra, ele deverá dar a ela uma mina em ouro como presente de libertação.
140. Se ele for um homem livre, deverá dar a ela 1/3 de uma mina em ouro.

O olhar de Capitu - 21.º capítulo de um romance inexpugnável

E ela, mas ela? Disse-me, disse-nos, há nós, há nós, nós e o plural de nó, há nozes, há nós, nós, nós vários, vozes e vocês, há voz, há vós, avós. Chega, pare, paro. Nada mais digo nem direi nem farei, fariseu, farisei, farei. Há nossos antepassados, repassados dignos de nota, notas musicais. Há dós, rés e mis. E sóis. E o sol que rutila nauseabundantemente sobre nossas janelas e cinzeiros e altaneiros arrebóis. E a ressaca do mar e dos olhos sem fim de Capitu. E ela, e ela? Diamantes aos porcos, donde se conclui que, que, que, gaguejadamente se fazem abluções sobre letras e litros de palavras, lavras de pensatas. Pasta dental, flanelas, prateleiras, panelas altaneiras, lojas de amebas sensatas, silvos de tratados de sábios e nefelibatas.

Seres humanos

Do Diário da Região, de Rio Preto, cedido pelo amigão Montezuma Cruz.

A família de três angolanas economizou dinheiro durante três anos, atravessou o oceano Atlântico e viajou sete mil quilômetros até Rio Preto com apenas um objetivo: evitar a morte precoce. As africanas - duas meninas, de 7 e 9 anos, e uma jovem de 20 - sofrem de anemia falciforme, uma doença hereditária que causa dores pelo corpo, fraqueza, quadro anêmico persistente, acidente vascular cerebral (AVC) e pode, nos casos mais severos, matar. Em Angola, país africano colonizado por Portugal, até existem hematologistas, mas faltam medicamentos para tratar adequadamente a doença.

As angolanas descobriram Rio Preto depois que um conterrâneo, que sofre do mesmo mal, tratou-se na cidade e apresentou importante melhora na saúde. O caso ganhou repercussão na província de Zaire, a 400 km da capital, Luanda, onde moram. A dona de casa Isabel Antônio Helena, 44, conta que acredita, com todas as suas forças, em uma solução. Ela é mãe de Silvia Gisela Rosa, 20, e de Rosana Helena Silva, 9. As duas têm a doença e nunca passaram por acompanhamento médico. Sofrem dores fortes na cabeça e nas articulações e ficam, até duas semanas, sem frequentar a escola. A fraqueza limita até a ida ao banheiro - às vezes, são carregadas no colo pelos pais.

“Dói tanto que não consigo fazer nada”, relata Silvia, que cursa o equivalente ao oitavo ano do ensino fundamental brasileiro. Ela é pequena para a idade. Uma das complicações da doença é justamente o déficit de crescimento. “Quero ser advogada.” Silvia não tem o braço esquerdo, amputado na infância após uma sucessão de erros médicos. O membro foi fraturado em uma queda. Silvia revela que a família faz um esforço gigante na esperança de melhorar a vida dela e de Rosana. “O esforço não é só financeiro. Passamos noites inteiras acordadas cuidando delas. O meu sonho é vê-las em melhor estado. Quero que estudem e tenham uma vida normal”, diz Isabel.

Ela é mãe de mais duas meninas (que não sofrem da anemia) e tem parentes com a mesma doença. Estima gastar quase R$ 15 mil com a viagem. Somente as passagens aéreas custaram R$ 2 mil (ida e volta) para cada. Mas, como disse, não se arrepende. Maria João Fernandez, 31, também trouxe a filha Jaquelina João, 7, para se tratar em Rio Preto. A menina sente dores no peito com frequência. A dona de casa bateu na porta de inúmeros hospitais e clínicas angolanas, mas não conseguiu nada. Agora, está confiante em melhorar a saúde da filha. “Temos esperanças em fazer essa conquista.”

A doença da filha obrigou Maria João a parar de amamentar o filho, de 1 ano, para vir ao Brasil. O menino ficou sob os cuidados de uma irmã e da mãe. “Isso foi o mais difícil. Mas tenho que ajudar Jaquelina.” A família vai gastar R$ 10 mil. As cinco devem ir embora em duas semanas. O tratamento é feito em uma clínica particular de Rio Preto, sob comando do hematologista Flávio Naoum. Ele é sincero ao avaliar a falta de tratamento das angolanas até então. “Tiveram muita sorte. Correram risco de contrair infecções graves e de sofrer lesões permanentes em vários órgãos.”

O especialista já as medicou com vacinas e antibióticos, fez exames e vai indicar um tratamento para ser feito em Angola. Todo o procedimento das três vai custar R$ 1 mil. “Com essas medidas terão mais qualidade de vida. A cura, no entanto, só é possível com transplante de medula óssea.” As duas famílias estão hospedadas na casa de uma angolana, estudante da Unesp de Rio Preto, mas procuram casa para alugar. É que a moradia tem apenas dois cômodos e falta espaço para acomodar as visitas.

Teste do pezinho detecta a doença

A anemia falciforme é uma doença comum entre os negros. “Ela surgiu na África. Como uma defesa natural contra a malária. Foi introduzida no Brasil no período em que ocorreu tráfico de escravos”, afirma o hematologista Flávio Naoum. “Mas, hoje, também é comum em brancos e pardos brasileiros, em razão da miscigenação da população.” Segundo Naoum, a expectativa de vida de uma pessoa portadora de anemia falciforme é de 50 anos. “Com os novos tratamentos, é possível prolongar. Cada pessoa reage de uma forma à doença.”

Desde 2001, a doença é descoberta no Brasil com o teste do pezinho, após o nascimento da criança. Assim que constatada, o tratamento é iniciado. O uso preventivo de antibióticos ocorre até os cinco anos de idade da criança. Depois, é necessário acompanhamento regular com especialista. A taxa de óbito, diz Naoum, é de 20% em crianças de até cinco anos, que não realizam tratamento com prevenção de infecção. Em São Paulo, a proporção da doença é de um caso para cada 4 mil nascimentos.

A anemia falciforme pode causar acidente vascular cerebral (AVC) em crianças. Para quem apresenta esse quadro é recomendado a transfusão de sangue uma vez por mês. A manifestação clínica mais comum é a ocorrência de crises de dor, que atingem principalmente pés, mãos, braços, tórax, cabeça, abdômen e pernas. Além de AVC, há casos de úlcera de pernas, necrose do fêmur, retinopatia e déficit de crescimento.