sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Seres humanos

Do Diário da Região, de Rio Preto, cedido pelo amigão Montezuma Cruz.

A família de três angolanas economizou dinheiro durante três anos, atravessou o oceano Atlântico e viajou sete mil quilômetros até Rio Preto com apenas um objetivo: evitar a morte precoce. As africanas - duas meninas, de 7 e 9 anos, e uma jovem de 20 - sofrem de anemia falciforme, uma doença hereditária que causa dores pelo corpo, fraqueza, quadro anêmico persistente, acidente vascular cerebral (AVC) e pode, nos casos mais severos, matar. Em Angola, país africano colonizado por Portugal, até existem hematologistas, mas faltam medicamentos para tratar adequadamente a doença.

As angolanas descobriram Rio Preto depois que um conterrâneo, que sofre do mesmo mal, tratou-se na cidade e apresentou importante melhora na saúde. O caso ganhou repercussão na província de Zaire, a 400 km da capital, Luanda, onde moram. A dona de casa Isabel Antônio Helena, 44, conta que acredita, com todas as suas forças, em uma solução. Ela é mãe de Silvia Gisela Rosa, 20, e de Rosana Helena Silva, 9. As duas têm a doença e nunca passaram por acompanhamento médico. Sofrem dores fortes na cabeça e nas articulações e ficam, até duas semanas, sem frequentar a escola. A fraqueza limita até a ida ao banheiro - às vezes, são carregadas no colo pelos pais.

“Dói tanto que não consigo fazer nada”, relata Silvia, que cursa o equivalente ao oitavo ano do ensino fundamental brasileiro. Ela é pequena para a idade. Uma das complicações da doença é justamente o déficit de crescimento. “Quero ser advogada.” Silvia não tem o braço esquerdo, amputado na infância após uma sucessão de erros médicos. O membro foi fraturado em uma queda. Silvia revela que a família faz um esforço gigante na esperança de melhorar a vida dela e de Rosana. “O esforço não é só financeiro. Passamos noites inteiras acordadas cuidando delas. O meu sonho é vê-las em melhor estado. Quero que estudem e tenham uma vida normal”, diz Isabel.

Ela é mãe de mais duas meninas (que não sofrem da anemia) e tem parentes com a mesma doença. Estima gastar quase R$ 15 mil com a viagem. Somente as passagens aéreas custaram R$ 2 mil (ida e volta) para cada. Mas, como disse, não se arrepende. Maria João Fernandez, 31, também trouxe a filha Jaquelina João, 7, para se tratar em Rio Preto. A menina sente dores no peito com frequência. A dona de casa bateu na porta de inúmeros hospitais e clínicas angolanas, mas não conseguiu nada. Agora, está confiante em melhorar a saúde da filha. “Temos esperanças em fazer essa conquista.”

A doença da filha obrigou Maria João a parar de amamentar o filho, de 1 ano, para vir ao Brasil. O menino ficou sob os cuidados de uma irmã e da mãe. “Isso foi o mais difícil. Mas tenho que ajudar Jaquelina.” A família vai gastar R$ 10 mil. As cinco devem ir embora em duas semanas. O tratamento é feito em uma clínica particular de Rio Preto, sob comando do hematologista Flávio Naoum. Ele é sincero ao avaliar a falta de tratamento das angolanas até então. “Tiveram muita sorte. Correram risco de contrair infecções graves e de sofrer lesões permanentes em vários órgãos.”

O especialista já as medicou com vacinas e antibióticos, fez exames e vai indicar um tratamento para ser feito em Angola. Todo o procedimento das três vai custar R$ 1 mil. “Com essas medidas terão mais qualidade de vida. A cura, no entanto, só é possível com transplante de medula óssea.” As duas famílias estão hospedadas na casa de uma angolana, estudante da Unesp de Rio Preto, mas procuram casa para alugar. É que a moradia tem apenas dois cômodos e falta espaço para acomodar as visitas.

Teste do pezinho detecta a doença

A anemia falciforme é uma doença comum entre os negros. “Ela surgiu na África. Como uma defesa natural contra a malária. Foi introduzida no Brasil no período em que ocorreu tráfico de escravos”, afirma o hematologista Flávio Naoum. “Mas, hoje, também é comum em brancos e pardos brasileiros, em razão da miscigenação da população.” Segundo Naoum, a expectativa de vida de uma pessoa portadora de anemia falciforme é de 50 anos. “Com os novos tratamentos, é possível prolongar. Cada pessoa reage de uma forma à doença.”

Desde 2001, a doença é descoberta no Brasil com o teste do pezinho, após o nascimento da criança. Assim que constatada, o tratamento é iniciado. O uso preventivo de antibióticos ocorre até os cinco anos de idade da criança. Depois, é necessário acompanhamento regular com especialista. A taxa de óbito, diz Naoum, é de 20% em crianças de até cinco anos, que não realizam tratamento com prevenção de infecção. Em São Paulo, a proporção da doença é de um caso para cada 4 mil nascimentos.

A anemia falciforme pode causar acidente vascular cerebral (AVC) em crianças. Para quem apresenta esse quadro é recomendado a transfusão de sangue uma vez por mês. A manifestação clínica mais comum é a ocorrência de crises de dor, que atingem principalmente pés, mãos, braços, tórax, cabeça, abdômen e pernas. Além de AVC, há casos de úlcera de pernas, necrose do fêmur, retinopatia e déficit de crescimento.

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