Por Sérgio Vaz
Para lembrar meu (meu, do Jorge) inesquecível amigo Emilson Schafron.
Nenhum músico popular foi tão criticado e tão adorado quanto James Paul McCartney.
Leve, inconseqüente, contrafação de rock, muzak, raso demais, piegas, sem consistência, fácil, sentimental, indulgente, primitivo, tépido, desinteressante, aguado, indiferente, conversa fiada, completamente inócuo, o ponto mais baixo do rock, trivialidade charmosa e inofensiva, compêndio de gracinhas caseiras, viscosos produtos de confeitaria, lamaçal de doces nadas.
Todas essas expressões foram usadas em livros e jornais, durante os últimos 12 anos (o texto é de 1982), para qualificar Paul McCartney, sua música e seus discos. As três últimas expressões citadas, por exemplo, estão na página 35 da edição de 1° de maio deste ano do New Musical Express, a mais importante e respeitada publicação sobre música popular da Inglaterra.
Mas não é só na página 35 que o nome de Paul McCartney aparece; ele está também na página 2 da mesma edição do semanário, a página tradicionalmente dedicada à lista dos discos mais vendidos. Paul McCartney está em primeiro lugar na lista dos compactos simples mais vendidos, com “Ebony and Ivory”; o compacto havia sido lançado três semanas antes e já então ocupava o 17° lugar da lista; na semana seguinte, pulou para o segundo lugar; na outra, já estava em primeiro.
Um mês depois, no último dia 31 de maio, do outro lado do Atlântico, a revista Billboard publicava a lista dos 20 LPs mais vendidos e executados nos Estados Unidos. Primeiro lugar: Tug of War, de Paul McCartney.
Paul McCartney e primeiro lugar são expressões que se dão muito bem, juntas.
Pois, se há 12 anos, desde o fim dos Beatles, critica-se com tão violentos adjetivos a música de Paul McCartney, já lá se vão 20 anos que ele freqüenta os primeiros lugares das listas de mais vendidos e mais executados. E freqüenta com uma assiduidade jamais igualada por qualquer outro nome.
Foram citados aqui muitos adjetivos, mas adjetivos são coisas escorregadias, dependem do gosto do freguês. Números são outra história, não admitem contestação. Vamos a alguns números.
Paul McCartney foi o cantor que mais discos de ouro ganhou, em toda a história da indústria fonográfica. Foi o compositor que mais obras colocou nas listas dos discos mais vendidos na Inglaterra, de 1956 a 1973 (seguem-se, pela ordem, John Lennon, Gerry Goffin e Carole King). Mais ainda: ele é, hoje, o compositor que mais arrecada com direitos autorais, em todo o mundo.
Isso, é bem verdade, inclui também a produção do período em que Paul McCartney pertenceu a um conjunto de quatro músicos chamado Beatles, e aí é covardia, porque, afinal, os Beatles são o maior fenômeno musical da história. Vamos, então, a números posteriores ao fim dos Beatles. Paul costuma dizer que ganhou mais dinheiro em dois anos, com o seu conjunto Wings, do que em todos os anos como Beatle. Pelos shows, contratos com gravadoras, percentagem pela venda de discos e principalmente com direitos autorais, recebe por ano a absurda quantia de cerca de 20 milhões de libras – ou cinco bilhões e quatrocentos milhões de cruzeiros.
“Paul McCartney conseguiu mais, em termos de vendagem de disco, do que os outros três juntos”, informa 25 Years of Rock, um livro cuja preocupação básica são números, e não os adjetivos. Esse e outros livros informam: todos os LPs de Paul McCartney, desde 1970, ano da separação dos Beatles, até 1978, chegaram à lista dos dez mais vendidos na Inglaterra. Seis dos oito LPs desse período chegaram ao primeiro lugar nos Estados Unidos. Um deles, Band of the Run, de 1973, ficou três anos na lista dos mais vendidos nos Estados Unidos; foi um dos LPs de maior vendagem da década (até 1977, três milhões e meio de cópias, só no mercado americano), e o mais bem-sucedido, comercialmente, de todos os LPs dos quatro ex-Beatles. “Mull of Kentyre”, compacto simples lançado no segundo semestre de 1977 pelo seu conjunto Wings, foi o disco mais vendido de toda a história, na Inglaterra – mais, portanto, até mesmo que os grandes sucessos daquele outro conjunto a que Paul McCartney pertenceu, como “She loves you”, “I want to hold your hand”, “Help”, “Penny Lane”, “Hey Jude”, “Let it be”.
Paul McCartney é, certamente, o único músico que foi superstar duas vezes.
Recomeço
No dia 8 de fevereiro de 1972, um rapaz de 30 anos incompletos apresentou-se a um funcionário da Universidade de Nottingham – cidade de 300 mil habitantes, a meio caminho entre Londres e Liverpool – , e perguntou se ele e seu conjunto poderiam tocar no campus no dia seguinte. No dia seguinte, umas poucas centenas de estudantes ouviram a primeira apresentação pública do recém-criado conjunto Wings: Denny Seiwell, bateria; Denny Laine, guitarra; Henry McCullough, guitarra; Linda McCartney, vocais e teclados; e, na guitarra baixo e voz, o rapaz que pedira autorização para se apresentar. Paul McCartney estava de volta à estrada.
Durante as semanas seguintes, o grupo percorreu estradas inglesas numa perua, parando para dar rápidos concertos em salões de baile de universidades, concertos em geral acertados com a administração poucas horas antes. Num desses dias, o grupo cancelou uma apresentação na Universidade de Leeds, ao saber que a imprensa havia sido avisada do acontecimento e estaria presente.
Paul McCartney queria acostumar-se de novo ao palco – desde 29 de agosto de 1966, dia em que os Beatles fizeram sua última apresentação ao vivo, em um parque de São Francisco, Califórnia, ele não fazia shows. Queria, também, praticar com o novo conjunto, que havia criado no final do ano anterior, 1971; fazer ensaios gerais, ao vivo, diante de platéias – mas platéias pequenas, pouco exigentes, que se satisfizessem com o simples fato de estar vendo um ex-Beatle em carne e osso. Mas, até que os ensaios chegassem a um nível razoável, queria estar longe da imprensa, da opinião pública.
Paul estava mal com boa parte da opinião pública naquele ano de 1972. Muita gente o responsabilizava pelo fim dos Beatles – e o odiava por isso. Afinal, tinha sido ele o primeiro a anunciar oficialmente que estava deixando o conjunto, em uma entrevista de pergunta e resposta inteiramente preparada por ele mesmo e que vinha encartada no seu primeiro disco solo, McCartney, de 1970. (Na entrevista, ele apontava os motivos pelos quais se separava do conjunto. Suas palavras: “diferenças pessoais, diferenças musicais, diferenças empresariais e sobretudo porque eu gosto mais de ficar com a minha família”.) Tinha sido ele que “traíra” o conjunto, insistindo em lançar aquele disco antes mesmo do lançamento de Let it Be, o último LP dos Beatles a chegar às lojas. Tinha sido ele que, em dezembro daquele ano de 1970, entrara na Justiça pedindo o fim oficial do conjunto e da sociedade que geria seus negócios, a Apple Corps. Ltda.
Claro, não foi Paul quem quis e provocou o fim dos Beatles. As coisas não são assim tão simples – e, ao contrário, se houve alguém que fez o possível para que os quatro não se separassem , foi justamente Paul. Mas o que transparecia era que Paul tinha saído primeiro – e milhões de pessoas, no mundo inteiro, acreditavam nas aparências.
Além disso, para uma enorme multidão de fãs do conjunto, e para a quase totalidade dos autores e jornalistas que escreviam sobre música popular, depois da separação dos Beatles John Lennon passou a ser visto como o santo, o profeta, o gênio, o apóstolo da revolução, o anti-establishment, o anticonvencional, o líder da contracultura. Paul McCartney era o careta, o quadrado, o burguês, o tipo-família. “A história foi convenientemente reescrita, apresentando São John como o heróico fora-da-lei, e Paul como o invertebrado cumpridor dos deveres” (Nick Kent, no New Musical Express, 1982). “A maioria dos críticos já estava inclinada a tomar partido de Lennon na guerra civil dos Beatles: Paul era visto como o traidor da contracultura, que tinha feito os Beatles se separarem e vendido sua alma ao Sistema” (Nicholas Schaffner, em seu livro The Beatles Forever, 1977). “As músicas de John Lennon descreviam luta, enquanto as de Paul negavam qualquer luta. John cultivava sua rebelião e sua raiva; Paul se decidia pelo brilho, pelo estrelato” (Greil Marcus, em artigo no livro The Rolling Stone Illustrated History of Rock & Roll, 1980).
Assim, foi em parte para não atrair novas críticas virulentas e desgastantes que Paul preferiu voltar aos palcos tateando, devagar, cuidadosamente, quase em sigilo. No meio do ano, ainda em 1972, o grupo Wings excursionou por sete países periféricos (em termos de show business) da Europa, como Suécia e Finlândia, apresentando-se por 26 vezes em teatros pequenos.
No meio do ano seguinte, tomou coragem para fazer uma excursão pelas principais cidades da Inglaterra. Em novembro, o grupo Wings estava reduzido a apenas sr. e sra. McCartney e mais o fiel guitarrista Denny Laine. (O grupo passou por diversas formações entre 1971 e 1979; só o casal McCartney e Laine permaneceram todo o tempo.) Naquele mês de novembro, Paul lançou o quinto LP da era pós-Beatles, Band of the Run. Vendeu demais, como já foi dito aqui – mas isso nem interessava tanto; vender bem, ele sempre vendeu, inclusive nos quatro discos anteriores, impiedosamente malhados pela crítica. O interessante é que ninguém teve coragem de dizer, sobre Band of the Run, nada menos entusiástico do que bom, excelente, grande.
De novo no topo
No auge da Beatlemania, no verão de 1964, 55 mil pessoas foram ao Shea Stadium, um estádio de beisebol em Nova York, ver os superstars John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr. Em abril de 1976, foram abertas as bilheterias do Madison Square Garden de Nova York para a venda de ingressos para os dois shows que o grupo Wings iria fazer (leia-se os dois shows que Paul McCartney iria fazer), nos dias 24 e 25 de maio. Em três horas, os 40 mil ingressos foram vendidos.
Depoimento de quem esteve lá e viu:
“Sua voz nunca esteve em melhor forma do que naquelas duas noites no Garden. A voz é um dos grandes instrumentos do rock, certamente um dos mais versáteis. Por mais de duas horas sua voz passeou por toda a escala entre o sussurro e o grito, sempre alcançando notas que a maioria dos cantores de rock sequer sabem que existem, nunca vacilando ou saindo do tom. (…) Ninguém pensou em cunhar a palavra “Wingsmania”. A multidão estava ali por uma única razão: ver e ouvir um indivíduo. De fato, o momento mais emocionante aconteceu quando o restante do conjunto Wings saiu do palco, e Paul acomodou-se em uma cadeira com seu violão acústico, cantando ‘Blackbird’ e ‘Yesterday’.” (A descrição é de Nicholas Schaffner, no livro The Beatles Forever.)
As apresentações em Nova York faziam parte de uma gigantesca turnê que durou 13 meses, de setembro de 1975 a outubro de 1976, e durante a qual o conjunto tocou em 11 países, diante de mais de dois milhões de espectadores. Muita coisa, claro. Mas nada tão desgastante, tão absurdo, tão desumano quanto no tempo dos Beatles, quando eles fizeram turnês uma atrás da outra, praticamente sem parar, de 1963 a 1966, por todas as cidades de alguma importância da Inglaterra e da Escócia, e mais Hong Kong e as grandes cidades da Suécia, França, Dinamarca, Austrália, Nova Zelândia, Itália, Espanha, Alemanha, Japão, Canadá e Estados Unidos (só aos Estados Unidos, foram quatro vezes, entre fevereiro de 1964 e agosto de 1966).
Naqueles tempos eles eram mais jovens, mais loucos. Durante a sua pré-história, antes de se transformarem no conjunto musical mais famoso do mundo, eles já estavam acostumados a um ritmo alucinante, quase inacreditável, de tocar um rock vigoroso, barulhento e rude durante oito horas por noite (às vezes até mais), sete dias por semana em infectos clubes de bairros barra pesada de Hamburgo, para descansar e dormir nas poltronas de um cinema vizinho e usar o imundo toalete dos homens como camarim e seu único banheiro. Isso foi por volta de 1960. Seu primeiro disco oficial, o compacto simples “Love me do”, saiu em outubro de 1962; a partir de 1963, eles começaram a ganhar mais dinheiro que qualquer outro músico do mundo, mas não havia sequer muito tempo para usar esse dinheiro. A vida era uma seqüência interminável de show, condução para o hotel, condução para a cidade seguinte, show, condução para hotel, avião para outro país, condução para o hotel, condução para o show, etc., etc., etc. Com interrupções, é claro – para gravar, filmar, dar entrevistas…
Paul – o único dos quatro ex-Beatles que, depois da separação, voltou a fazer grandes turnês – aprendeu a lição. Durante essa excursão de 1975 a 1976, diversas casas foram alugadas para os membros do conjunto, em diferentes locais. Depois de cada show, eles eram levados de avião para a casa mais próxima, onde já estava tudo preparado para recebê-los – não era necessário sequer desfazer malas.
E, sempre que possível, as crianças do casal McCartney os acompanhavam nas excursões com o inevitável batalhão de empregadas, governanta, etc.
Afinal, apesar de trabalhar muito (ele sempre foi o ex-Beatle mais ativo, mais empreendedor, mais produtivo), Paul sempre disse, desde o seu casamento com Linda Eastman, em março de 1969, que seu principal interesse era a família – depois, então, vinha a música.
Paul, de fato, sempre demonstrou que gosta da vidinha em casa, cercado pelos filhos, ao lado da mulher. Não é muito dado a festas, reuniões sociais, badalações. “Só fico à vontade com gente que conheço”, confirmou ele à revista Newsweek, há poucas semanas. Poderia ter acrescentado que só fica à vontade nos lugares que conhece. Enquanto John optou por viver em Nova York, por considerá-la a capital do mundo (“Se eu vivesse há dois mil anos – ele disse, no começo dos anos 70 – gostaria de morar em Roma. Isto aqui é a Roma de hoje”), e Ringo flutuava sua cabeça leve e boa entre Los Angeles e Monte Carlo, Paul jamais abandonou a Inglaterra. Apesar do imposto de renda que, naquele estranho e distante país, taxa violentamente os ricos. Mais ainda: mora exatamente nos mesmos lugares em que já morava nos distantes tempos dos Beatles.
Ele tem uma casa, comprada ainda em 1966 por 40 mil libras (cerca de 10 milhões e oitocentos mil cruzeiros), no bairro londrino de St. John Woods, pertíssimo dos estúdios da gravadora EMI, onde os Beatles gravaram seus discos. Uma casa ampla, confortável, de três andares, mas sem qualquer ostentação. É ali que fica quando está em Londres, gravando ou cuidando dos negócios da MPL Communication Inc. (MPL significa McCartney Productions Limited), a empresa que, entre outras coisas, trata da arrecadação dos seus direitos autorais, da edição de seus discos, das suas apresentações ao vivo e da gravação de filmes promocionais.
Mas o seu refúgio fica na Escócia, numa península a oeste de Glasgow, chamada Kintyre, junto do Canal do Norte, que separa a Escócia da Irlanda do Norte. A cidade mais próxima da fazenda de Paul, ali, chama-se Campbelltown e tem seis mil habitantes – menos do que duas quadras do Jardim América.
Mesmo antes da separação dos Beatles, ele já havia comprado a fazenda na península de Kentyre (o nome ficaria mundialmente famoso por causa da canção de 1977); em 1970, comprou uma área contígua, de 400 acres. É impossível que uma visita indesejável chegue à casa de pedras, isolada por grandes portões e por pântanos e guardada por cães treinados.
Ali, ele convive com os quatro filhos: Heather, hoje com 18 anos, filha de uma primeira união de Linda e que Paul adotou com o mesmo carinho que dá a Mary, hoje com 11 anos, Stella, hoje com nove, e o caçula James Louis, hoje com quatro. Canta para eles, atendendo a seus pedidos – canções antigas ou outras que inventa na hora para agradá-los. Planta sua horta – uma vez a polícia descobriu lá, entre outros vegetais, alguns pés de maconha, o que lhe valeu uma multa, num dos quatro diferentes episódios em que se envolveu com a lei por porte ou uso de drogas. Vê televisão – se confessa “um telemaníaco”. Lê histórias em quadrinhos e novelas de ficção científica. Come a comidinha preparada pela própria mulher. Cria carneiros e, sempre que pode, participa pessoalmente da tosquia.
Paixão, ódio
Na capa de Ram, seu segundo LP após o fim dos Beatles, lançado em maio de 1971, há uma foto de Paul segurando um carneiro pelo chifre (Ram significa justamente carneiro). Apenas quatro meses depois, chegou às lojas o segundo LP de John Lennon, feito depois da separação dos Beatles, Imagine; dentro havia uma foto-brinde de John segurando um porco pelas orelhas, numa óbvia gozação ao ex-parceiro. Mas era no próprio disco que chegava ao ponto mais agudo o ódio destilado por John contra Paul e que várias entrevistas reproduziam no mundo inteiro. Uma faixa, “How do you sleep?”, era inteiramente dedicada a xingar o homem que durante 15 anos foi o grande amigo e parceiro de John em cerca de 180 canções, várias delas entre as melhores já feitas no planeta. John diz que Paul é dominado por Linda; que em toda a sua vida, só fez “Yesterday”, e o resto é bobagem: que uma cara bonita dura um ano ou dois, mas logo as pessoas iriam descobrir que ele não vale nada; que ele deveria ter aprendido alguma coisa, durante aqueles anos todos em que tinham estado juntos; que o som que ele cria é muzak – música banal, monótona, emasculada, repetitiva, tola.
É inegavelmente chocante que companheiros tão íntimos e próximos viessem a público lavar sua roupa suja. Mas pode-se até compreender. A relação entre John Lennon e Paul McCartney sempre foi muito profunda, os vínculos muito fortes – e, afinal, é comum que, ao fim de uma relação de amizade, paixão, respeito, interação, sobrevenham queixas, reclamações, ciúmes, disputas, invejas, críticas. Ódio, enfim.
Paul e John se conheceram adolescentes: Paul tinha 14 anos, John, 16. Era 1956. Nos dez anos seguintes, durante toda a passagem da adolescência para a maturidade, dos bairros operários de Liverpool para a fama mundial, os dois ficaram juntos a maior parte do tempo, compondo juntos, tocando juntos, fazendo farra juntos, experimentando drogas juntos. E passaram boa parte desse tempo trancados em hotéis ou ônibus, escondidos do mundo, fugindo das hordas de fãs histéricas e delirantes.
Isso explica, em parte, por que a parceria Lennon-McCartney era tão íntegra, tão umbilicalmente coesa, nos primeiros tempos dos Beatles. Compondo, Lennon e McCartney formavam quase um ser à parte, Lennonmccartney. E esse ser não era o resultado apenas da soma de cada um dos maravilhosos talentos individuais; era mais – era o resultado da interação de dois talentos e duas personalidades diferentes, quase antagônicas, e por isso mesmo, complementares. Um, rebelde, irônico, inquieto, amargo, aberto a novidades e experiências, preguiçoso, dispersivo. O outro, calmo, tranqüilo, sereno, com tendência para a doçura e o romantismo, trabalhador, disciplinado. Um complementava o outro naquilo em que o outro era mais fraco; um aparava os excessos do outro, naquilo em que o outro era menos autocrítico. E mais ainda: um inspirava o outro, forçava o outro a se aperfeiçoar, a produzir mais e melhor.
Tinha sido assim desde o primeiro dia. Naquele ano de 1956, quando o garoto John Lennon, líder de um conjuntinho chamado The Quarrymen, foi apresentado ao garoto Paul McCartney e o ouviu tocando guitarra, pensou: “Ele é tão bom quanto eu. Se ele entrar no conjunto, o que será que vai acontecer?” O próprio John disse isso ao jornalista Hunter Davis, autor da única biografia autorizada dos Beatles, The Beatles – The Authorized Biography, reeditada em 1978. E Hunter Davies descreve em seguida como, ao saber que Paul compunha suas próprias músicas, John passou também a compor as suas – “para não ficar pra trás”.
Muitos anos e uma revolução musical depois, quando os Beatles pararam de se apresentar ao vivo e de fazer excursões, cada um passou a ter mais tempo para cuidar da própria vida, do seu próprio caminho. A partir daí, passou a haver cada vez mais canções de Paul McCartney e canções de John Lennon, embora a assinatura continuasse sendo Lennon-McCartney. Foi aí, também, que o fim dos Beatles começou.
John iria trocar os Beatles, e especialmente Paul, por Yoko Ono, uma pessoa que, ao contrário de Paul, era seu igual, e não seu pólo oposto: uma mulher forte, enérgica, cheia de vitalidade e vontade de subverter padrões da arte e o comportamento. Paul iria trocar os Beatles, e especialmente John, por Linda Eastman , uma pessoa que, ao contrário de John, era seu igual, e não seu pólo oposto: uma mulher sem maiores ambições de realização pessoal e artística, dócil, meiga e mansa, incapaz de contrariar o parceiro, dizer não.
A separação, depois de tantos anos de união, foi dolorosa como costumam ser todas as separações, com censuras, queixas e críticas de parte a parte, mais as difíceis, penosas, desgastantes discussões sobre a partilha dos bens na Justiça, em processos que duraram vários anos.
John destilou seu ódio pelo ex-companheiro aberta e acidamente, em público, porque este era seu estilo de fazer as coisas: ele sempre foi o que colocou tudo o que sentia nas suas composições, na sua voz, nas declarações à imprensa. Paul dificilmente se mostra, abre a alma, desabafa. Deu respostas às críticas de John e da imprensa, é verdade, em muitas de suas músicas – mas respostas educadas, polidas, gentis, sutis. “Algumas pessoas conseguem dormir à noite achando que o amor é uma mentira. Algumas pessoas jamais compreendem” (“Some people never know”, 1971). “Você pensa que as pessoas já se encheram de tolas canções de amor. Mas eu vejo que não é bem assim. Algumas pessoas querem encher o mundo com tolas canções de amor. E qual é o problema?” (“Silly love songs”, 1976).
Qual é o problema?
O problema foi exposto de uma maneira clara, límpida, pelo crítico Richard Goldstein, escrevendo no jornal Village Voice sobre a turnê americana do grupo Wings em 1976 (durante a qual, aliás, Paul cantava “Silly love songs”). “Ele poderia ter sido um jovem Kurt Weill, o nosso representante. Mas, em vez disso, ele preferiu ser uma estrela”.
Aí está. É bem a súmula, o resumo de tantas críticas, de tantos adjetivos, como os que foram citados no começo deste texto. O problema é que praticamente toda uma geração esperava muito de Paul McCartney. Esperava que ele, tantas vezes chamado de o mais Beatle dos Beatles, fosse o substituto dos Beatles, na ausência do conjunto que ajudou a mudar a cabeça de milhões de pessoas em todo o mundo. Esperava que ele fosse o representante das dores, das inquietações de todos nós. O porta-voz.
“Paul poderia ter sido artisticamente mais ambicioso; ele tem todo o potencial para produzir obras ainda mais brilhantes”, disse Nicholas Shaffner, em The Beatles Forever.
Aí está. O problema não está nas músicas e nos discos que Paul McCartney cria – o problema está no fato de que as pessoas exigem dele o que ele não tem interesse em dar.
Nós todos conhecemos bem esse problema, não é? Caetano Veloso conhece bem. Gilberto Gil conhecer bem.
Tambores diferentes
Quando Paul McCartney se apresentou por duas noites no Madison Square Garden, em 1976, John Lennon não se deu ao trabalho de andar as 30 quadras que separam o grande ginásio de seu apartamento no Dakota Building, diante do Central Park. John estava lá trancado, fazendo exatamente aquilo que tanta gente criticou em Paul: cuidando de si e da família. Da metade de 1975 até a metade de 1980, John não entrou uma vez num estúdio de gravação. Estava trocando as fraldas de Sean, preparando a comida de Sean – feliz da vida. Quando, finalmente, foi para o Hit Factory, em Nova York, gravar Double Fantasy, levava sete novas composições. Em nenhuma delas tratava da discriminação racial, da escravidão da mulher, do militarismo, de presos políticos, do esmagamento da classe operária, temas constantes em seus primeiros discos pós-Beatles. Sequer tratava de exorcizar seus demônios interiores. Seis das sete músicas eram singelas canções de amor – uma de amor a Sean, as outras de amor a Yoko. Na sétima, ele falava justamente disso, de não estar mais no carrossel: “As pessoas dizem que eu sou preguiçoso, desperdiçando minha vida em sonhos. ‘Você não sente faltas dos grandes tempos, garoto, agora que você não está mais no baile?’ As pessoas fazem perguntas, perdidas, confusas. E eu digo a elas que não existem problemas, só soluções”.
John Lennon chegava aos 40 anos de idade em paz consigo e com o mundo.
Quando a notícia de que John Lennon acabara de ser assassinado chegou à Inglaterra, puseram um microfone diante de Paul McCartney e perguntaram o que ele tinha a dizer. “Eu respondi; ‘É um choque’. O que, é claro, parecia uma coisa muito frívola de se dizer. Mais tarde, naquela noite, eu fiquei soluçando e chorando e tudo veio para fora. Eu não era nada daquela figura toda composta que disse: ‘É um choque’. Mas eu não tenho de pedir desculpas e dizer ‘sinto muito, não sou bom nessas coisas’. Eu sou assim.” (Essas declarações de Paul são do mês passado.)
Paul McCartney sabe que é assim: ele dificilmente se abre, mostra suas feridas.
Em Tug of War, o disco que chegou às lojas pouco antes de Paul fazer 40 anos (seu aniversário foi ontem – 18 de junho de 1982), há uma balada chamada “Here today”. O acompanhamento é feito pelos mesmos instrumentos (violão e quarteto de cordas) de “Yesterday”, a música de Lennon-McCartney que foi interpretada pelo maior número de cantores (até 1977, havia 76 gravações diferentes da música à venda no mercado norte-americano). “Here today”, no entanto, dificilmente será gravada por qualquer outro artista. É um monólogo personalíssimo de Paul McCartney dirigido ao amigo-inimigo morto. Ele lembra os tempos em que estiveram juntos, as diferenças que os separaram, a amargura da separação, a noite em que choraram. E ele, que não é de se mostrar, se mostra inteiro: “Eu não estou mais prendendo as lágrimas. Eu te amo”.
É o momento mais emocionante de seu 12º LP em 12 anos pós-Beatles e seguramente o melhor, ao lado de Band on the Run. (Tug of War já não traz o nome Wings, assim como o LP anterior, de 1980. É creditado a Paul McCartney, apenas.) Mas não é tudo. Ele, tantas vezes acusado de fazer apenas baladinhas, faz excelentes rocks, lembra os tempos do boppy, envereda até pelo funk – e genialmente. Mas não é tudo. Ele, tantas vezes acusado de fazer apenas musiquinhas sentimentais, goza a desvalorização das moedas, ataca o racismo, prega a harmonia entre negros e brancos. E, na faixa título, produz uma soberba obra-prima, de uma riqueza sonora somente comparável às melhores obras dos Beatles, e condena a competição entre as pessoas, saúda um futuro em que cada um saiba para que vive, e sonha com um tempo em que a Humanidade saiba dançar ao som de tambores diferentes dos tambores da guerra.
“Ele poderia ter sido um jovem Kurt Weill…”
Poderia. Que ótimo que ele escolheu ser Paul McCartney.
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