Em agosto de 1977, eu ainda (e acho que ainda hoje) foca, emocionei-me com a notícia publicada nos jornais: um sargento do Exército saltara no poço das ariranhas do zoo de Brasília para salvar uma criança que havia caído lá. A criança foi resgatada por ele. O militar morreu pelos ferimentos causados pelo ataque dos bichos. Um jornalista saiu do factual e cronicou a respeito. Na ditadura e na Folha de então, braço dos milicos. Sempre tive a crônica de Lourenço Diaféria como um grande texto. Diaféria, ídolo de minha geração, foi afastado do jornal (e a Folha, este "baluarte", calou-se, então; certamente não o faria nos dias de hoje).
Hoje: o gesto, a ação dos dois militares brasileiros, cujo trecho reproduzo na nota abaixo desta, não é de guerra. Eles são treinados para a guerra, mas fundamentalmente para a paz. Para mim, guerreiros em tempos de paz são tão ou mais mais valorosos. Minha homenagem a Diaféria e ao sargento de Brasília, que já se foram deste mundo, e aos dois bravos brasileiros que continuam naquele outro mundo.
HERÓI. MORTO. NÓS.
[Crônica publicada em 1º de setembro de 1977 e retirada do arquivo digital da Folha de S. Paulo]
Neste texto foi mantida a grafia original da época
Lourenço Diaféria
Não me venham com besteiras de dizer que herói não existe. Passei metade do dia imaginando uma palavra menos desgastada para definir o gesto desse sargento Sílvio, que pulou no poço das ariranhas, para salvar o garoto de catorze anos, que estava sendo dilacerado pelos bichos.
O garoto está salvo. O sargento morreu e está sendo enterrado em sua terra.
Que nome devo dar a esse homem?
Escrevo com todas as letras: o sargento Silvio é um herói. Se não morreu na guerra, se não disparou nenhum tiro, se não foi enforcado, tanto melhor.
Podem me explicar que esse tipo de heroísmo é resultado de uma total inconsciência do perigo. Pois quero que se lixem as explicações. Para mim, o herói -como o santo- é aquele que vive sua vida até as últimas consequências.
O herói redime a humanidade à deriva.
Esse sargento Silvio podia estar vivo da silva com seus quatro filhos e sua mulher. Acabaria capitão, major.
Está morto.
Um belíssimo sargento morto.
E todavia.
Todavia eu digo, com todas as letras: prefiro esse sargento herói ao duque de Caxias.
O duque de Caxias é um homem a cavalo reduzido a uma estátua. Aquela espada que o duque ergue ao ar aqui na Praça Princesa Isabel -onde se reúnem os ciganos e as pombas do entardecer- oxidou-se no coração do povo. O povo está cansado de espadas e de cavalos. O povo urina nos heróis de pedestal. Ao povo desgosta o herói de bronze, irretocável e irretorquível, como as enfadonhas lições repetidas por cansadas professoras que não acreditam no que mandam decorar.
O povo quer o herói sargento que seja como ele: povo. Um sargento que dê as mãos aos filhos e à mulher, e passeie incógnito e desfardado, sem divisas, entre seus irmãos.
No instante em que o sargento -apesar do grito de perigo e de alerta de sua mulher- salta no fosso das simpáticas e ferozes ariranhas, para salvar da morte o garoto que não era seu, ele está ensinando a este país, de heróis estáticos e fundidos em metal, que todos somos responsáveis pelos espinhos que machucam o couro de todos.
Esse sargento não é do grupo do cambalacho.
Esse sargento não pensou se, para ser honesto para consigo mesmo, um cidadão deve ser civil ou militar. Duvido, e faço pouco, que esse pobre sargento morto fez revoluções de bar, na base do uísque e da farolagem, e duvido que em algum instante ele imaginou que apareceria na primeira página dos jornais.
É apenas um homem que -como disse quando pressentiu as suas últimas quarenta e oito horas, quando pressentiu o roteiro de sua última viagem- não podia permanecer insensível diante de uma criança sem defesa.
O povo prefere esses heróis: de carne e sangue.
Mas, como sempre, o herói é reconhecido depois, muito depois. Tarde demais.
É isso, sargento: nestes tempos cruéis e embotados, a gente não teve o instante de te reconhecer entre o povo. A gente não distinguiu teu rosto na multidão. Éramos irmãos, e só descobrimos isso agora, quando o sangue verte, e quanto te enterramos. O herói e o santo é o que derrama seu sangue. Esse é o preço que deles cobramos.
Podíamos ter estendido nossas mãos e te arrancando do fosso das ariranhas -como você tirou o menino de catorze anos- mas queríamos que alguém fizesse o gesto de solidariedade em nosso lugar.
Sempre é assim: o herói e o santo é o que estende as mãos.
E este é o nosso grande remorso: o de fazer as coisas urgentes e inadiáveis -tarde demais.
É um belo texto. Digno de um herói do jornalismo.
ResponderExcluirLembro, sim, Jorge: Diaféria foi afastado, Cláudio Abramo também. E Boris Casoy assumiu o cargo de editor-chefe. A FSP suspendeu os editoriais. Hoje, aqui em Brasília, as crianças aprendem na escola quem foi o sargento Hollemback. Choramos tanto os desaparecidos e torturados pela ditadura. Felizmente, ainda temos militares com sentimento de povo.
ResponderExcluirobrigada amigo por este texto lindo e por colocar em pauta estes valores para nós...Sempre me pergunto assistindo a Tv e vendo aquela povo morto de fome na fila para receber alimentos no Haiti. Que é que estou fazendo aqui sentada assistindo de camarote a desgraça do outro.
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