Roubado do FB do Nilson Monteiro, amigo de muitos anos, sessentão, cidadão honorário de Londrina, Curitiba e Paraná.
Minha forma de desejar bom Natal a todos: um texto que escrevi à minha filha, Ana, na madrugada de seu nascimento, no início dos anos 80.
Ana, amém
Início de noite. Fachos esquisitos, ardentes, brilharam ao mesmo tempo em três distâncias diferentes. Clarão maior que farol de milha. E mágico: não cegava, tampouco atrapalhava a visão. Os três magros, suados, camisetas roídas nos sovacos, largaram para o mesmo destino, os brutões bufando.
Os faróis luziam mais que todas as estrelas - quem acreditasse em cometas do asfalto já teria o que contar para o resto da vida. O risco brilhante dos caminhões podia ser visto em Colorado, Curitiba, Ribeirão Preto, Ipatinga, Manaus, Belém, Areia ou São Paulo. A tocha, como um triângulo, seguia para o encardido Norte do Paraná.
Os caminhantes, os que foram acordados pelo brilho, os assustados, os descrentes, os crentes, uns e outros seguiram Dito, Tião e Mané. Mecânicos, lavadores, bóias-frias, guardas rodoviários, feirantes, políticos, prostitutas, motoristas, ciganos, padres, jornalistas, fazendeiros, ladrões, garçonetes, bancários, empresários, professores, médicos, agricultores, vagabundos, obscuros ou luzentes homens e mulheres que enxergaram os faróis, com ou sem profissão, crentes ou descrentes, nem chegaram a perceber um pó fino, roxo, grudando nos poros, melecando as costas. Ou o cheiro doce de antemanhã. Caminharam.
Maria vencera preconceitos. Caminhoneira, dirigira até não suportar mais as dores. José, seu companheiro, improvisara um berço na banheira onde testava câmeras e pneus remendados.Na borracharia, o cheiro era sujo, cinza, com mosquitos cansados namorando a lâmpada quase morta, cara de tomate.
José abaixou a voz de Sérgio Reis e seu menino da porteira no radinho vermelho de pilha. Olhou as unhas maceradas, as mãos grossas, a roupa engraxada, pneus, câmaras, o batente, rodas, o martelo, o sossego do gato, a torneira pingando mole, nacos de borracha espalhados pelo chão, olhou a vida. E sorriu.
Boca a boca, buzina a buzina, a notícia correu o país. E este meteu o pé na estrada. De Cambará a Paranavaí, de Presidente Prudente a Ortigueira, de São José dos Pinhais a Vitória, de Foz do Iguaçu a Fortaleza, de Curitiba a Campo Grande, feito rastilho a mão virou única: atrás do Dito, Mané e Tião.
Foram noite-dia-ano, secas e tempestades, calarões e geadas, meninos e velhos, orações e brigas, poeira soprando nos carreadores, relâmpagos tricando trilhas, trilhos e camilhos misturados, lágrimas caudalosas, espontâneas, quase inexplicáveis.
Dito, Tião e Mané brecaram os brutos. Bufavam. Cheiro de lona. Nas mãos, uma garrafa de cachaça, um quilo de feijão e meio quilo de carne de sol. Os fachos se encontraram, único, varando o mato beira-de-linha.
Maria ardia. Por um instante se fez silêncio. Absoluto. Absurdo. O mundo estacionado no acostamento, entre Londrina e Ibiporã. Até os grilos e pererecas aquietaram. Tião, Dito e Mané, as mãos ensebadas de direção e câmbio, arderam, abraçados a José, em brasa.
Um berro cortou a madrugada. Os sinos desembestaram. Feito loucos, um carrilhão descabelado, badalaram em todo país, vararam o mundo. A moda sertaneja comeu solta em cada barraco. Forró de sons, imagens e signos. E na borracharia Brasil começaram a aparecer coisas fantásticas como pães, goiabada, café, lápis, queijo, cadernos, roupas, peixes, um pedaço de rapadura, banana, arroz, mel, cachaça, espigas maduras, feijão, calçados, açúcar, respeito, sal, liberdade, prazer, laranjas, solidariedade, bifes, água, dignidade, terra...
Ana chorava, miúda e melecada. Era Natal!
Nilson Monteiro
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