Sérgio Augusto, no Estadão de hoje. Craque.
Sete meses atrás, emendei a vitória do Barcelona sobre o Manchester United na Liga dos Campeões com um jogo do Campeonato Brasileiro. Fui de Wembley ao Engenhão. Choque cultural é pouco. Os jogadores nem haviam entrado em campo e já estávamos perdendo; e não me refiro ao meu time, que afinal ganhou a partida, mas ao estado do gramado: careca, cheio de buracos e implantes de areia. É assim a maioria dos campos de futebol do Brasil, que ainda mais medonhos ficam se imediatamente expostos a uma comparação com o de qualquer estádio europeu de primeira e segunda linha.
Com a bola rolando, a derrota ampliou-se. Passes errados de tudo quanto é distância, chutes descalibrados, faltas a granel, jogadas bisonhas, cruzamentos patéticos para varapaus obsoletos. Que esporte é esse?, perguntei-me, perplexo. Se era futebol aquilo que eu acabara de ver na ESPN, o que estava vendo no SporTV - e outras vezes vira e continuaria vendo - precisava ser rebatizado. Pensando bem, aquela cancha estava à altura do insípido esporte que nela botinavam o Botafogo e seu adversário, justo o Santos, que há cinco décadas dividia com o alvinegro carioca o galardão de melhor time de futebol do melhor futebol do mundo.
Acabou-se o que era doce. E não foi no domingo passado não. Aquele olé catalão na arena de Yokohama foi apenas a última faena de uma corrida iniciada faz tempo. Quando? Antes da última Copa do Mundo, que apenas sacramentou a atual superioridade do futebol europeu, mais especificamente do espanhol. Bem antes, portanto, da desclassificação do Internacional pelo congolês Mazembe, no Mundial de Clubes de 2010, e da medíocre temporada da seleção brasileira sob o comando de Mano Menezes, que ainda não conseguiu extirpar todos os vícios da Era Dunga e nos assegurou um sexto lugar (sexto lugar!) no ranking da Fifa.
Estagnamos técnica, tática e filosoficamente. Como na educação, descuidamos do ensino fundamental, do estudo nas escolinhas de base, da formação de jogadores que conheçam bem os fundamentos do futebol e não cresçam semialfabetizados com a bola nos pés e na cabeça, sem uma visão coletiva do que, afinal, se chama football association. A crítica vale para toda a América do Sul. São erros acumulados que, como os problemas econômicos que em parte os determinaram, não se superam de uma hora para outra. A próxima Copa do Mundo já é daqui a dois anos. O Brasil corre o risco de ser o primeiro campeão mundial a perder as duas copas que disputou em casa. Já foi o primeiro a perder um ministro do Esporte por corrupção, durante os preparativos para hospedar um Mundial.
Se ainda vivo e à sombra das chuteiras imortais, Nelson Rodrigues teria escrito que o Santos levou do Barcelona "um banho de Paulina Bonaparte", e que os gandulas de Wembley pegaram mais na bola que os jogadores santistas. Mas não há como saber se o seu "patriotismo inatual e agressivo, digno de um granadeiro bigodudo" o deixaria enxergar o óbvio: que não mais se trata de um confronto entre a "saúde de vaca premiada" e a "velocidade burríssima" dos jogadores europeus e a "morosidade inteligentíssima" dos brasileiros, Fla-Flu retórico dos anos 60, soberbamente superado pela seleção que levantou o caneco em 1970.
No Mundial do México fizemos a maior diferença porque, além de bem preparados fisicamente, ousamos desde a primeira convocação, sem as hesitações que liquidaram nosso time na Copa da Inglaterra, e escalando os melhores até fora de suas habituais posições - Piazza de zagueiro, Rivellino na ponta esquerda, Tostão enfiando-se pelo meio da área -, e adotando o "sistema Dumas": um por todos, todos por um. Mais "association", impossível. E, como havia alguns gênios no time para aumentar a diferença, fizemos a mais fulgurante campanha de um país numa Copa do Mundo.
O que se viu no México foi a culminância de uma revolução a rigor iniciada pelo húngaro Béla Guttman, no início dos anos 50, só ultrapassada pelo "futebol total" que Rinus Michels impôs ao futebol holandês do início da década de 70. Fala-se muito no 16 de julho de 1950, quando perdemos a Jules Rimet para os uruguaios, mas não sei o que é pior, se perder para um time inferior, jogando em casa, ou levar um baile de técnica, tática, disposição e o escambau, como aconteceu com o que sobrara do dream team de Zagalo no dia 3 de julho de 1974, quando a Laranja Mecânica regida por Cruyff nos tirou o tetra em Dortmund.
"Muito tico-tico no fubá", desdenhou Zagallo sobre o alucinante toque de bola dos holandeses, antes da Copa. Tico-tico, sim. Mas o fubá era verde e amarelo.
Depois, como se sabe, Michels levou o futebol tico-tico para o Barcelona, por onde, aliás, passariam duas gerações de craques holandeses. E é por aí que podemos começar a decifrar o enigma da acachapante superioridade do futebol catalão. Ora, direis, fazendo vosso um raciocínio bem rodrigueano, que a Holanda não venceu sequer sua melhor Copa, ao passo que o Brasil, para todo sempre liberto de seu complexo de vira-lata, emplacaria mais dois Mundiais. Ambos, medíocres, diga-se.
Mas o fato é que ganhamos, somos pentacampeões, produzimos e exportamos craques em profusão, como exportávamos ouro e pedras preciosas, e substituímos o complexo de vira-lata pelo que Francisco Bosco muito apropriadamente batizou de "complexo de dálmata", tão ou mais danoso que o outro na medida em que o narcisismo de que se nutre pode nos dar a ilusão de que o futebol jogado pelo Barcelona tem o mesmo pedigree do que jogamos na Copa de 1982. Para encurtar a discussão: quem é o Serginho Chulapa do Barcelona?
Mesmo sem ter visto o Honved de Puskas, o Real Madrid de Di Stéfano, o Santos de Pelé e o Botafogo de Garrincha, Bosco afirma, intrepidamente, que nada se compara ao Barcelona. Eu, que vi todos os citados (os dois primeiros só em imagens), assino embaixo desse juízo e desta explicação: "Os times do passado jogavam o mesmo futebol dos adversários, só que melhor. Esse time do Barcelona não joga o mesmo futebol que os adversários; joga um futebol inédito". Sorte nossa que Mano Menezes também tenha percebido isso.
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