Por Nilson Monteiro, cidadão do Paraná e da Extremadura
Uma reportagem familiar
Uma reportagem familiar
Ao espiar pela janela do trem indo de Lisboa as luzes
piscando na madrugada, senti o arrepio da infância e um sentimento novo de quem
sempre quis chegar àquela terra e só a conhecia nos sonhos e pelas fotos.
Acompanhado da Cleusa e dos meus cunhados Marcelo e Jacira, eu pisei o chão da
estação ferroviária de Cáceres, na Extremadura, como quem descobria o solo
lunar.
É aqui que está enterrado o umbigo familiar, martelava em
mim. E imaginei: quero experimentar as sensações de Militão, filho de Valeriano
Montero Granado e de Horta Cordeiro Acosta, e Josefa, filha de Pio Gallego
Streia e Joanna Aranda Torilha, nesta cidade, nos seus sítios, embora a saia da
noite não me deixasse enxergar nada de seus contornos além das lâmpadas de um bar,
na própria Ferroviária, que só abriria as portas às 6 horas.
Foi onde tomamos café e ensaiei frases em espanhol aprendido
de orelha com os avós e os tios mais velhos. E começaria a perceber que minha
ignorância não permitira que eu entendesse que não seria assim tão fácil de
desenterrar nosso passado em uma província das que formam a Comunidade Autônoma
de Extremadura que, com 1.768 quilômetros quadrados, é a maior província em
extensão territorial da Espanha e tem cerca de 200 povoados ou pueblos, como eles dizem. Em um deles
nasceram e cresceram meus avós, eu, porém, teimava, com a razão conferida pelos únicos documentos que
tinha em mãos. E sonhava encontrá-lo ou pelo menos saber em que pueblo. Sei que os sobrenomes, com a
vinda para cá, foram “abrasileirados”: Montero virou Monteiro e Gallego virou
Galiego.
Mas, voltando um pouco, a intenção era esta: eu queria
conhecer Cáceres a partir dos sonhos criados pelo imaginário infantil e sem o
didatismo dos livros. E foi assim que nela passamos uns dias neste abril,
tentando descobrir seus mistérios e o visgo que seu falar produz em minha alma.
Una
ciudad de pedra y fuego
Nela, senti o pulsar dos Monteiro e Galiego a todo instante.
Muito – ou tudo – tem a ver com esta gente que nasceu e foi criada no Brasil
pelos extremeños que deixaram aquele canto do mundo em situação adversa, fosse
pelas pragas que invadiam o campo ou pelo clima agudo que matava as plantações.
Um tanto frustrado, não descobri de qual povoado esses espanhóis saíram, de
qual porto zarparam em direção ao seu novo país. Eu e Cleusa procuramos por
inúmeros lugares – Prefeitura, Igreja, policias (tanto local como nacional),
Jusgado (que corresponde a uma espécie de Ministério da Justiça), listas
telefônicas etc. O problema é que não tínhamos o nome do povoado de nascimento
nem do vô e nem da vó. Talvez a tia Joana possa ter de memória.
Mas, a parte antiga da cidade tem a cara deles, o jeito
deles. Explico: a ciudad vieja foi
criada em 25 a.C e está absolutamente conservada, apesar das guerras entre
romanos, mouros, cristãos e do desenvolvimento, nas bordas de sua muralha, de
uma cidade nova. Somadas, em um só corpo, elas têm 98 mil habitantes. A cidade
nova tem tudo o que uma urbe moderna: prédios (embora todos com um padrão de
altura que não excede a cinco andares), avenidas, ruas, largas calçadas, lojas,
restaurantes, livrarias, correria etc.
Ficamos
hospedados no coração da ciudad vieja,
onde palpitam emoções que têm a ver com o nosso passado e presente. Cáceres, a vieja, é uma cidade de pedra e fogo,
como a definiu o escritor Juan Antonio Pérez Mateos. E de profundo encanto.
Um
dia, no meio da Plaza Mayor, liguei para tia Joana, falando de minha emoção de
estar no local onde nasceram seus pais e, consequentemente, toda nossa família.
A tia Joana é a mais velha dos irmãos vivos e a que traz, a meu ver, traços
vigorosos daquele lugar e de seu povo.
Ninhos de cegonha, um símbolo
No
ano 1000, os árabes fizeram alusão a ela com o nome Qâzrix, em história ainda
hoje escrita com castelos, torres, igrejas, praças, museus etc. Esta história
inclusive mostra peças e documentos do início de tudo, bem antes de Cristo,
guardados em seus museus. A conquista cristã do núcleo, em 1229, lhe dá
configurações interessantes: os telhados mais velhos da cidade são ornamentados
com crucifixos. Assim como os castelos e suas torres têm inscrições e brasões
de nobres que a dominaram.
Mas, o que os meus olhos viram, para
suspiros de minha alma e não raras lágrimas? Ao entrar-se na Ciudad Monumental
de Cáceres, como é conhecida a parte antiga, caminha-se por uma cidade
medieval, renascentista e barroca, com três praças – Santa Maria, São Jorge e
São Mateus –, que dominam a paisagem, ligadas por ruelas estreitas e carregadas
de segredos. Entre elas, está a Via de La Plata, que é mantida muito bem
conservada e liga, em outro destino, à estrada que vai a Santiago de
Compostela. E entre elas também está a Calle de Gallegos, onde fiz questão de
ser fotografado, todo metido. Mistura de Gallego e Montero.
Meus olhos viram mais: nas torres da Igreja
de São Mateus são mantidos, há séculos, ninhos de cegonhas, o símbolo da
cidade. Sua exposição ao sol ou sua brancura à noite são poemas silenciosos, ao
contrário da “gritaria” das golondrinas, pássaros a quem damos o nome, aqui, de
andorinhas, ao final dos dias.
A comida extremeña é pesada, à base de ovo e carne de jamón,
que é o nosso porco. Tudo tem jamón no meio – do café da manhã ao jantar. O
jamón ibérico é o preferido e mais caro. São porcos, à vezes cruzados com
javalis, que se criam em liberdade no pasto, comendo bellotas, que é uma
espécie de fruta. O costume de comer jamón (ou porco) resistiu na Extremadura,
apesar de 700 anos de dominação mulçumana na região.
Os
restaurantes, os bares, as ruas, tudo parece cheirar carne de porco. E isto,
parece-me, explica o grande gosto de nossa família por pratos preparados com
esta carne, especialmente o torresmo (ai, meu Deus!). Ah, sim, além de comer
jamón, eles gostam muito também do licor de bellota.
Além de jamón, em tudo há huevo. É ovo frito, cozido, em
todas as refeições. Um dos pratos preferidos é o “migas”, uma mistura de pão
com linguiça e, claro, ovo, além da gordura de porco. O vinho também é uma
preferência. Aliás, os cacereños produzem e bebem muito vinho. Bebem a ótima
cerveza San Miguel, amarga e densa, bebem licor, vinho, vinho, vinho.
Outra marca familiar: eles adoram doces. E muito doces. Hay
siempre dulce e mais dulce. A sopa também, como para os Monteiro e os Galiego,
é uma verdadeira obrigação. À noite, não adianta procurar por bares,
restaurantes, padarias etc. pois não se acha, nem por reza, uma tostada (pão e
manteiga) com café e leite. Em nenhum lugar da cidade, nem na Monumental e nem
na “Nueva”. Não há. Eles mostram o cardápio, sempre com três composições –
entrada (há sopas castellanas), prato principal (e lá vem o jamón) e sobremesa
(sempre um doce muito doce).
Brigas de galos e touradas
Descobri, logo no primeiro dia, no bar da Ferroviária, mais
um costume familiar: eles misturam sempre no pão manteguilla com mermelada. Ou
seja, o salgado e o doce. E isto ocorre em todos os lugares. Viram? Eu vejo
nisto um hábito nosso, cultivado pelos nossos pais e por vários de nós.
As marcas estão por todas as partes e me
emocionaram. Por exemplo, em um livro do Pérez Mateos que li no hotel: “Cáceres,
cruel y sangriento em lãs luchas de gallos – y lãs apuestas, uma vez levantada
la prohibiciòn del juego – y aquel personaje, Diego Regulo, que possue un gallo
tan triunfador...”. Pois é, as brigas de galos tão presentes nas vidas de
nossos pais, tios e nas nossas (dos primos mais velhos) também foram importadas
de lá. Sangram em nosso passado recente.
Sangram assim como as corridas de touros, que só acontecem em
maio na Plaza de Toros em Cáceres. Visitei uma delas, erguida em 1846. As
touradas, com sua matança, assim como seu caráter cultural, ainda são
permitidas e muito assistidas em Cáceres, Valência e Madrid. Olé!
Os porcos, os touros, os galos de briga, as paisagens nos
remetem sempre a uma herança rural, que temos muito forte dentro de nós e que
ainda geme, mesmo silente, com o badalar do sino com o Ângelus, nos finais dos
dias em Presidente Bernardes. É assim também com a religiosidade que se vê não
só em Cáceres, mas em toda a Espanha, profundamente católica. A religiosidade
de nossa família tem forte eco em nossos antecessores e nos locais onde
viveram.
Um
coração achado e perdido
As palavras, escritas ou faladas, não parecem dar conta do
que se tem para descrever da parte velha de Cáceres, uma cidadezinha que se
amiúda em nosso viver, espírito e alma. Nela, os dias passam mornos, sem o
tormento de automóveis ou os sons frenéticos da sua outra banda urbana ou de
todas as cidades modernas. O seu andar é íntimo e monótono, como convém a uma
cidade de pedra, com a história grudada em sua pele. Li, em algum lugar, por
lá, algo que define o que estou tentando dizer: “Los instantes, las lunes y las
sombras de muchos dias y muchas noches el la sentido la caricia de las manos
cálidas de um Cáceres único y eterno”.
Pensei em tudo isto na manhã da volta, muito cedo, na mesma
Ferroviária, em direção a Atocha, em Madrid. No caminho, embalado pelos sonhos
e sons dos trilhos da infância, houve onze paradas, das quais me lembro de
Cañaveral, Casas Millan, Miravete, Mirabel, Plasência, Trujillo, Talavera de la
Reina, Illescas, Oropesa, Torrijos e de outra,
cujo nome esqueci. São cidadezinhas de pedra, como Cáceres. A terra,
pelo campo, é empedrada. A vegetação é rasteira, quase linear. Mas, há uma
infinidade de oliveiras, parreirais e gado. As cercas são feitas de pedras,
assim como as habitações rurais. São paisagens de filmes ou guardadas em nossa
memória afetiva, cortada por estradazinhas brancas.
O
nome para a região, Extremadura, explicaram-me, vem das agruras do clima –
muito frio no inverno, com vários graus abaixo de zero, e muito quente no
verão, o calor é abrasador, além da dureza do chão. O trem segue, passando por
essas cidadezinhas, recolhendo poucos espanhóis e seu idioma forte, sem muitos
adornos, que soa familiar e agradável, apesar da velocidade da entonação.
Há um livro de coisas para eu contar. E há uma determinação
de achar o povoado onde esta família, que hoje passa das 160 pessoas, nasceu e
de onde se aventurou a viajar para o Brasil. O cordão umbilical é elástico.
Penso em Cáceres – te deixo com o coração rojo, achado e perdido,
sem bússolas, enterrado nas curvas do tempo, vapor de lágrimas e pedras nos
olhos.
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