quinta-feira, 26 de abril de 2012

Cáceres


         

 Por Nilson Monteiro, cidadão do Paraná e da Extremadura
Uma reportagem familiar


        Ao espiar pela janela do trem indo de Lisboa as luzes piscando na madrugada, senti o arrepio da infância e um sentimento novo de quem sempre quis chegar àquela terra e só a conhecia nos sonhos e pelas fotos. Acompanhado da Cleusa e dos meus cunhados Marcelo e Jacira, eu pisei o chão da estação ferroviária de Cáceres, na Extremadura, como quem descobria o solo lunar.
        É aqui que está enterrado o umbigo familiar, martelava em mim. E imaginei: quero experimentar as sensações de Militão, filho de Valeriano Montero Granado e de Horta Cordeiro Acosta, e Josefa, filha de Pio Gallego Streia e Joanna Aranda Torilha, nesta cidade, nos seus sítios, embora a saia da noite não me deixasse enxergar nada de seus contornos além das lâmpadas de um bar, na própria Ferroviária, que só abriria as portas às 6 horas.
        Foi onde tomamos café e ensaiei frases em espanhol aprendido de orelha com os avós e os tios mais velhos. E começaria a perceber que minha ignorância não permitira que eu entendesse que não seria assim tão fácil de desenterrar nosso passado em uma província das que formam a Comunidade Autônoma de Extremadura que, com 1.768 quilômetros quadrados, é a maior província em extensão territorial da Espanha e tem cerca de 200 povoados ou pueblos, como eles dizem. Em um deles nasceram e cresceram meus avós, eu, porém, teimava, com  a razão conferida pelos únicos documentos que tinha em mãos. E sonhava encontrá-lo ou pelo menos saber em que pueblo. Sei que os sobrenomes, com a vinda para cá, foram “abrasileirados”: Montero virou Monteiro e Gallego virou Galiego.
        Mas, voltando um pouco, a intenção era esta: eu queria conhecer Cáceres a partir dos sonhos criados pelo imaginário infantil e sem o didatismo dos livros. E foi assim que nela passamos uns dias neste abril, tentando descobrir seus mistérios e o visgo que seu falar produz em minha alma.
       
                        Una ciudad de pedra y fuego
       
        Nela, senti o pulsar dos Monteiro e Galiego a todo instante. Muito – ou tudo – tem a ver com esta gente que nasceu e foi criada no Brasil pelos extremeños que deixaram aquele canto do mundo em situação adversa, fosse pelas pragas que invadiam o campo ou pelo clima agudo que matava as plantações. Um tanto frustrado, não descobri de qual povoado esses espanhóis saíram, de qual porto zarparam em direção ao seu novo país. Eu e Cleusa procuramos por inúmeros lugares – Prefeitura, Igreja, policias (tanto local como nacional), Jusgado (que corresponde a uma espécie de Ministério da Justiça), listas telefônicas etc. O problema é que não tínhamos o nome do povoado de nascimento nem do vô e nem da vó. Talvez a tia Joana possa ter de memória.
        Mas, a parte antiga da cidade tem a cara deles, o jeito deles. Explico: a ciudad vieja foi criada em 25 a.C e está absolutamente conservada, apesar das guerras entre romanos, mouros, cristãos e do desenvolvimento, nas bordas de sua muralha, de uma cidade nova. Somadas, em um só corpo, elas têm 98 mil habitantes. A cidade nova tem tudo o que uma urbe moderna: prédios (embora todos com um padrão de altura que não excede a cinco andares), avenidas, ruas, largas calçadas, lojas, restaurantes, livrarias, correria etc.
Ficamos hospedados no coração da ciudad vieja, onde palpitam emoções que têm a ver com o nosso passado e presente. Cáceres, a vieja, é uma cidade de pedra e fogo, como a definiu o escritor Juan Antonio Pérez Mateos. E de profundo encanto.
Um dia, no meio da Plaza Mayor, liguei para tia Joana, falando de minha emoção de estar no local onde nasceram seus pais e, consequentemente, toda nossa família. A tia Joana é a mais velha dos irmãos vivos e a que traz, a meu ver, traços vigorosos daquele lugar e de seu povo.

                Ninhos de cegonha, um símbolo
                       
No ano 1000, os árabes fizeram alusão a ela com o nome Qâzrix, em história ainda hoje escrita com castelos, torres, igrejas, praças, museus etc. Esta história inclusive mostra peças e documentos do início de tudo, bem antes de Cristo, guardados em seus museus. A conquista cristã do núcleo, em 1229, lhe dá configurações interessantes: os telhados mais velhos da cidade são ornamentados com crucifixos. Assim como os castelos e suas torres têm inscrições e brasões de nobres que a dominaram.
    Mas, o que os meus olhos viram, para suspiros de minha alma e não raras lágrimas? Ao entrar-se na Ciudad Monumental de Cáceres, como é conhecida a parte antiga, caminha-se por uma cidade medieval, renascentista e barroca, com três praças – Santa Maria, São Jorge e São Mateus –, que dominam a paisagem, ligadas por ruelas estreitas e carregadas de segredos. Entre elas, está a Via de La Plata, que é mantida muito bem conservada e liga, em outro destino, à estrada que vai a Santiago de Compostela. E entre elas também está a Calle de Gallegos, onde fiz questão de ser fotografado, todo metido. Mistura de Gallego e Montero.
  Meus olhos viram mais: nas torres da Igreja de São Mateus são mantidos, há séculos, ninhos de cegonhas, o símbolo da cidade. Sua exposição ao sol ou sua brancura à noite são poemas silenciosos, ao contrário da “gritaria” das golondrinas, pássaros a quem damos o nome, aqui, de andorinhas, ao final dos dias.
        A comida extremeña é pesada, à base de ovo e carne de jamón, que é o nosso porco. Tudo tem jamón no meio – do café da manhã ao jantar. O jamón ibérico é o preferido e mais caro. São porcos, à vezes cruzados com javalis, que se criam em liberdade no pasto, comendo bellotas, que é uma espécie de fruta. O costume de comer jamón (ou porco) resistiu na Extremadura, apesar de 700 anos de dominação mulçumana na região.
Os restaurantes, os bares, as ruas, tudo parece cheirar carne de porco. E isto, parece-me, explica o grande gosto de nossa família por pratos preparados com esta carne, especialmente o torresmo (ai, meu Deus!). Ah, sim, além de comer jamón, eles gostam muito também do licor de bellota.
        Além de jamón, em tudo há huevo. É ovo frito, cozido, em todas as refeições. Um dos pratos preferidos é o “migas”, uma mistura de pão com linguiça e, claro, ovo, além da gordura de porco. O vinho também é uma preferência. Aliás, os cacereños produzem e bebem muito vinho. Bebem a ótima cerveza San Miguel, amarga e densa, bebem licor, vinho, vinho, vinho.
        Outra marca familiar: eles adoram doces. E muito doces. Hay siempre dulce e mais dulce. A sopa também, como para os Monteiro e os Galiego, é uma verdadeira obrigação. À noite, não adianta procurar por bares, restaurantes, padarias etc. pois não se acha, nem por reza, uma tostada (pão e manteiga) com café e leite. Em nenhum lugar da cidade, nem na Monumental e nem na “Nueva”. Não há. Eles mostram o cardápio, sempre com três composições – entrada (há sopas castellanas), prato principal (e lá vem o jamón) e sobremesa (sempre um doce muito doce).

                                Brigas de galos e touradas 

        Descobri, logo no primeiro dia, no bar da Ferroviária, mais um costume familiar: eles misturam sempre no pão manteguilla com mermelada. Ou seja, o salgado e o doce. E isto ocorre em todos os lugares. Viram? Eu vejo nisto um hábito nosso, cultivado pelos nossos pais e por vários de nós.
            As marcas estão por todas as partes e me emocionaram. Por exemplo, em um livro do Pérez Mateos que li no hotel: “Cáceres, cruel y sangriento em lãs luchas de gallos – y lãs apuestas, uma vez levantada la prohibiciòn del juego – y aquel personaje, Diego Regulo, que possue un gallo tan triunfador...”. Pois é, as brigas de galos tão presentes nas vidas de nossos pais, tios e nas nossas (dos primos mais velhos) também foram importadas de lá. Sangram em nosso passado recente.
        Sangram assim como as corridas de touros, que só acontecem em maio na Plaza de Toros em Cáceres. Visitei uma delas, erguida em 1846. As touradas, com sua matança, assim como seu caráter cultural, ainda são permitidas e muito assistidas em Cáceres, Valência e Madrid. Olé!
        Os porcos, os touros, os galos de briga, as paisagens nos remetem sempre a uma herança rural, que temos muito forte dentro de nós e que ainda geme, mesmo silente, com o badalar do sino com o Ângelus, nos finais dos dias em Presidente Bernardes. É assim também com a religiosidade que se vê não só em Cáceres, mas em toda a Espanha, profundamente católica. A religiosidade de nossa família tem forte eco em nossos antecessores e nos locais onde viveram.

                        Um coração achado e perdido

        As palavras, escritas ou faladas, não parecem dar conta do que se tem para descrever da parte velha de Cáceres, uma cidadezinha que se amiúda em nosso viver, espírito e alma. Nela, os dias passam mornos, sem o tormento de automóveis ou os sons frenéticos da sua outra banda urbana ou de todas as cidades modernas. O seu andar é íntimo e monótono, como convém a uma cidade de pedra, com a história grudada em sua pele. Li, em algum lugar, por lá, algo que define o que estou tentando dizer: “Los instantes, las lunes y las sombras de muchos dias y muchas noches el la sentido la caricia de las manos cálidas de um Cáceres único y eterno”.
        Pensei em tudo isto na manhã da volta, muito cedo, na mesma Ferroviária, em direção a Atocha, em Madrid. No caminho, embalado pelos sonhos e sons dos trilhos da infância, houve onze paradas, das quais me lembro de Cañaveral, Casas Millan, Miravete, Mirabel, Plasência, Trujillo, Talavera de la Reina, Illescas, Oropesa, Torrijos e de outra,  cujo nome esqueci. São cidadezinhas de pedra, como Cáceres. A terra, pelo campo, é empedrada. A vegetação é rasteira, quase linear. Mas, há uma infinidade de oliveiras, parreirais e gado. As cercas são feitas de pedras, assim como as habitações rurais. São paisagens de filmes ou guardadas em nossa memória afetiva, cortada por estradazinhas brancas.
O nome para a região, Extremadura, explicaram-me, vem das agruras do clima – muito frio no inverno, com vários graus abaixo de zero, e muito quente no verão, o calor é abrasador, além da dureza do chão. O trem segue, passando por essas cidadezinhas, recolhendo poucos espanhóis e seu idioma forte, sem muitos adornos, que soa familiar e agradável, apesar da velocidade da entonação.
        Há um livro de coisas para eu contar. E há uma determinação de achar o povoado onde esta família, que hoje passa das 160 pessoas, nasceu e de onde se aventurou a viajar para o Brasil. O cordão umbilical é elástico.
        Penso em Cáceres – te deixo com o coração rojo, achado e perdido, sem bússolas, enterrado nas curvas do tempo, vapor de lágrimas e pedras nos olhos.



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