Por Raphael Gomide.
O jornal francês “Le Monde” o chamava de “mulato hercúleo”,
a revista Time fantasiou olhos verdes – eram castanhos –, a CIA
(Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos) o descreveu em
relatórios como “sucessor de Guevara” e inspirador de movimentos
revolucionários na América Latina. Deputado da constituinte de 1946,
cassado quando o partido foi declarado ilegal, o baiano Carlos
Marighella aderiu à luta armada durante a ditadura militar, instituída
em 1964.
Fundou e comandou a maior organização do
gênero, a ALN (Ação Libertadora Nacional), e passou a “inimigo público
número 1”, nas palavras do ministro da Justiça, Gama e Silva. Marighella
viveu e sofreu quatro das décadas mais intensas da política nacional.
Desarmado, sem seguranças e de peruca, sua vida acabou
com quatro tiros, em novembro de 1969, ao tentar alcançar o veneno que
levava na pasta, em um “ponto” da ALN, na Alameda Casa Branca, em São
Paulo. Organizada pelo temido delegado do Dops (Departamento de Ordem
Política e Social) paulista Sérgio Paranhos Fleury, que lhe deu voz de
prisão antes da fuzilaria, a operação tinha mais de 30 policiais.
“Matamos Carlos Marighella”, contou uma agente à mãe, por telefone.Figura notória na ditadura, quando estampou duas capas da revista Veja, Marighella passou a um nome esquecido da História brasileira, quase ausente nos livros escolares e desconhecido da juventude. O jornalista Mário Magalhães, 48, dedicou nove anos – mais de um terço de sua carreira de 26 anos – para resgatar a história “de cinema” desse neto de escravos e filho de italiano em 732 páginas no livro “Marighella – O Guerrilheiro que incendiou o mundo”, da Companhia das Letras (R$ 56,50).
Invisível nos livros de História
“De todos os brasileiros, a vida que
identifiquei como a mais fascinante a ser contada foi a de Marighella.
Pode-se não gostar dele, mas é impossível ficar indiferente a ele. É um
gigante da História do Brasil e um dos brasileiros com maior projeção no
exterior. A ausência dele nos livros de História é uma desonestidade
intelectual – seria o equivalente a tirar Carlos Lacerda. Não defendo
que o promovam, mas não podem omiti-lo”, disse Mário Magalhães ao
iG
.
Tendo passado boa parte de sua atividade
política na clandestinidade, Marighella dificultou o trabalho de seu
biógrafo, não tendo deixado diários ou agendas. Para escrever sua
reportagem predileta, Magalhães entrevistou 256 pessoas, consultou
bibliografia de 600 livros e pesquisou em 32 arquivos públicos – no
Brasil, Rússia, República Tcheca, Estados Unidos e Paraguai.
A obstinação – quase obsessão – de Mário
Magalhães pela comprovação da prova jornalística o levou a fazer 2580
notas. “A vida de Marighella é tão espetacular que daria margem ao
leitor imaginar que havia ficção em um livro que só narra fatos reais.
Além disso, é direito do leitor saber a origem de cada informação”,
justificou.
Pelo projeto de contar a história “de um brasileiro
maldito”, “tido como meio amalucado até por amigos próximos”, Magalhães
deixou um confortável emprego na Folha de S.Paulo, onde tinha sido
ombudsman e trilhara carreira de destaque e prêmios.Ateu no candomblé e doações de artistas
Na pesquisa, foram ouvidos da professora no
Ginásio da Bahia ao policial que o revistou logo após a morte e revelou
que o guerrilheiro não estava armado – refutando a versão policial, que
ficou registrada na História. As descobertas do autor corrigiram lendas,
como essa, e revelaram histórias pitorescas.
Mulato baiano da Fonte Nova, Marighella não bebia, não
fumava e, embora se declarasse ateu, Magalhães descobriu que o filho de
mãe carola iniciou-se no candomblé, e se descobriu “filho de Oxóssi”.
Amante da poesia – no colégio, respondeu uma prova de física com versos
–, o guerrilheiro mais procurado do País encontrou tempo para, na
clandestinidade, escrever, imprimir e distribuir um livro de versos, boa
parte deles eróticos. Inspirou artistas como o catalão Joan Miró e os
cineastas Jean-Luc Godard e Luchino Visconti a fazer doações a sua
causa.Tortura
Pela tortura, passou uma vez, em 1936, sob
Getúlio Vargas, nunca durante a ditadura militar iniciada em 64. Foram
22 dias de suplícios nas mãos da polícia. Socos no estômago, golpes com
canos de borracha nas plantas dos pés, foi açoitado nos rins, costas e
nádegas. Pontas de cigarro eram apagadas no seu corpo. Com um alfinete
tirado da gravata, um policial enfiou-lhe o metal sob as unhas, dedo por
dedo.
Tornou-se liderança do Partido Comunista Brasileiro nos
anos 40, década que dividiu entre presídios em locais paradisíacos, como
Fernando de Noronha (PE) e Ilha Grande (RJ), e a Assembleia
Constituinte, no Rio. Após ser libertado da prisão política pelo regime
de Getúlio Vargas, no pós-guerra, elegeu-se deputado pela Bahia, na
bancada comunista que incluía o escritor conterrâneo Jorge Amado. O
“Cavaleiro da Esperança” e líder máximo do PCB Luís Carlos Prestes, foi
eleito senador pelo Distrito Federal.O deputado tinha três ternos, doados, e amarrava as mangas da camisa com cordinhas; o cinto partiu-se e adaptou outra corda, qual capoeirista. Homem de partido, destinava 92% do seus 15 mil cruzeiros mensais – equivalente a R$ 20.926, em valor corrigido pelo IGP-DI – ao PCB. Vivia com 1200 cruzeiros – R$ 1674 – por mês, e dividia o apartamento com uma família e um amigo. Acabou cassado em 47, com o voto do futuro presidente Juscelino Kubitschek, depois de o TSE pôr o PCB na ilegalidade.
Terrorista
Nos anos 50, organizou greves, foi à China e à
União Soviética. Veio a ditadura em abril de 64, e em julho quiseram
prendê-lo em um cinema na Tijuca. Reagiu, levou um tiro e foi levado no
camburão. Mais adiante, passou à luta armada, quando Moscou era contra e
rompeu com o PCB. Criou a ALN e aparecia nos cartazes de “terroristas
procurados” do regime militar.
Homem de ação, escreveu o “Minimanual do
Guerrilheiro Urbano”, apanhado de erros e acertos da ALN que se tornou
um sucesso na esquerda internacional. Em “Ditadura Escancarada”, o
jornalista Elio Gaspari diz que o “guerrilheiro urbano de Marighella é
algo mais que um super-homem”. A descrição é a de, no mínimo, um James
Bond, o 007 dos filmes e livros de Ian Fleming.
“É muito importante aprender a conduzir um
automóvel, pilotar um avião, dirigir um barco a motor ou a vela”, [o
guerrilheiro] deve “conhecer a arte de se disfarçar”, ter “conhecimento
de química e de combinação de cores, fabricação de carimbos, o perfeito
conhecimento de caligrafia e de imitação das escritas”, “ser um grande
tático e um bom atirador”. O próprio Marighella falharia em cumprir uma
das mais prosaicas “exigências”: não dirigia. A peruca do disfarce
tampouco enganou a polícia na noite de sua morte.
Magalhães afirma que, apesar de se definir como
“terrorista” e guerrilheiro, Marighella condenava atentados contra
alvos civis e usava a concepção de “terror” da Resistência francesa à
ocupação nazista na 2ª Guerra Mundial.
Na ilegalidade, o protagonista do livro recebeu
dinheiro da União Soviética e o autor revela até um “mensalinho” do
insuspeito governador de São Paulo Adhemar de Barros – cujo cofre, após a
morte, abasteceria outra organização armada, a VAR-Palmares, que o
roubou no Rio.
O famoso “ouro de Moscou”, entregue ao PCB no
início dos anos 1960, equivaleria hoje a algo entre US$ 752 mil e US$
1,13 milhão pagos anualmente e superava, para efeito de comparação, o
arrecadado em 30 roubos pela ALN em 1968. Antes chamado de “traidor” por
Marighella, Adhemar de Barros lhe pagava um “mensalinho” de cerca de
US$ 10 mil, em apoio ao PCB clandestino. “Esse mensalinho não lustra a
biografia de ninguém”, disse Mário Magalhães.
Fez curso de guerrilha em Cuba e mandou guerrilheiros
para lá, comandou assaltos, teve amantes – dizia que “o adultério é tão
inevitável como a morte” – e foi espionado pela CIA e o KGB. Mesmo
dirigente máximo da ALN, organização de luta armada que fundou, foi “o
último a saber” do mais audacioso golpe da guerrilha no Brasil: o
sequestro do embaixador americano Charles Elbrick, em setembro de 69.
Foi ação da DI-GB (Dissidência Comunista da Guanabara), com o apoio da
ALN. “Cutucaram a onça com vara curta”, pressentiu Marighella.Morte
Foi morto exatos dois meses depois, pela equipe do policial Sergio Fleury, cujos métodos de tortura superavam os do nazista Klaus Barbie, o “Açougueiro de Lyon” da 2ª Guerra Mundial, na avaliação de um ex-membro da Resistência francesa, sobrevivente do suplício físico nos dois lugares.
Diferentemente do que a polícia alardeou à época, estava desarmado e sem seguranças. Segundo o autor, Marighella só portava seu revólver calibre 32 ou sua pistola 9mm em ações, o que não ocorria já havia algum tempo.
O guerrilheiro – ou terrorista, dependendo do ponto de vista – mais procurado do País morreu sozinho, cercado de inimigos.
Lançado no fim de outubro, no ano seguinte ao
centenário de nascimento do protagonista, o livro já teve 27 mil
exemplares impressos (a tiragem inicial foi de 12 mil) e recebeu o
Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Artes, como melhor
biografia de 2012.
O autor disse ter recebido três sondagens
para adaptações para o cinema. “A dúvida é se o ator principal será
Denzel Washington ou Wesley Snipes. As mulheres preferem Washington”,
brinca.
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