Tirado de O Estado de S. Paulo
Eugênio Bucci*
Sorria, você está sendo filmado. Ou chore, você está sendo filmado.
A propósito, não é improvável que você esteja sendo filmado enquanto lê este artigo. Os seus hábitos de consumo estão catalogados em bancos de dados que são vendidos por aí. A marca de papel higiênico que você compra no supermercado faz parte da sua ficha pessoal em algum arquivo de marketing. Os exames do seu check-up, realizados naquele laboratório todo informatizado, bem, eles podem cair na rede. As chamadas do seu celular são rastreáveis, todas elas. A que horas você ligou para quem e de que lugar você chamou, tudo se sabe. Pelas pesquisas que você faz no Google, os administradores podem levantar o seu rol de preferências, mesmo aquelas que você não gostaria de declarar em público. Os radares da cidade registram por onde você passeia de automóvel. As consultas que você faz na Amazon fazem parte do seu perfil, devidamente armazenado. Pelo seu cartão de crédito, podem saber os restaurantes em que você anda almoçando, os vinhos que você pede, a dieta que você segue. As portarias de prédios que você cruzou, as catracas que atravessou, os elevadores em que subiu ou desceu, tudo isso é sabido.
E aqui não estamos falando de vírus espiões instalados em seu computador, das escutas encomendadas pelos rivais (amorosos, religiosos, políticos ou econômicos), mas apenas dos mecanismos supostamente lícitos pelos quais, como já foi dito, você está sendo filmado. Não é bem que a privacidade tenha diminuído de uns tempos para cá. A privacidade, nos moldes em que costumávamos imaginá-la, virou uma categoria impossível, irrealizável. A privacidade foi extinta pela História.
Mais ainda: no nosso tempo a vigilância se massificou. Todos da massa são potencialmente vigiados, o que, em lugar de incomodar, parece excitar o público. A bisbilhotice ganhou status de um gênero lucrativo da indústria do entretenimento, com os reality shows se disseminando como epidemia. Quanto à massa, além de usufruir a vigilância indiscreta, pratica alegremente o esporte de espionar os semelhantes. Câmeras instaladas em celulares fizeram de cada cidadão um agente voluntário a serviço da grande rede de vigilância global. O "Grande Irmão" não é mais o ditador imaginado por George Orwell, aquele que tudo via, protegido em seu bunker supertecnológico. Hoje, o "Grande Irmão" é a massa. Todo mundo bisbilhota todo mundo.
Para chegar a esse estado passamos por duas grandes inversões. A primeira delas transformou o controle de presidiários numa forma de controle dos cidadãos. Há séculos o inglês Jeremy Bentham (1748-1832) imaginou uma prisão que permitiria aos carcereiros verificar a qualquer instante os movimentos de cada um dos prisioneiros. As celas seriam dispostas numa linha circular, alinhadas e empilhadas num imenso edifício arredondado. A parede externa desse edifício, aquela voltada para o lado de fora da circunferência, seria opaca, mas, e aí vem o detalhe perverso, a parede interna do edifício seria transparente, de tal modo que quem se postasse no miolo da prisão poderia ver, ao mesmo tempo, o interior de todas as celas. Por uma fresta em seu escritório central, o carcereiro veria todos, mas não seria visto pelos presidiários, que também não poderiam ver uns aos outros. Muitos anos depois, como se sabe, o filósofo francês Michel Foucault (1926-1984) refletiu caudalosamente sobre esse sistema, identificando nele uma forma de dominação que extrapolaria em muito a penitenciária de Jeremy Bentham. O panóptico estaria presente em todos os campos sociais e, ao saber-se visível o tempo todo, o sujeito, solto ou encarcerado, não importa, estaria intimidado, controlado, perderia a sua privacidade, a sua liberdade, a sua espontaneidade.
A segunda inversão tem um sabor de anedota: os vigiados, longe de se lamentar, entraram com tudo na brincadeira. Nas redes sociais, intimidades as mais improváveis roubam a cena; as pessoas encenam e vazam suas próprias privacidades. O exibicionismo e o voyeurismo digitais são a marca por excelência do século 21. Foi então que o voyeurismo, cansado de obscenidades da extinta vida privada, começou a explorar os segredos mais valiosos dos que bisbilhotam o planeta em nome dos governos mais poderosos da atualidade. Era inevitável: mais cedo ou mais tarde, a indústria da vigilância total cairia na rede ela também.
Dentro disso, qual a grande surpresa do WikiLeaks? Ora, ora, nenhuma.
Pelo WikiLeaks, a espionagem oficial, antes guardada pelos carimbos de "secreto" ou "confidencial" nos gabinetes diplomáticos, vai-se convertendo em divertimento planetário. A profusão dos documentos vazados e a irrelevância da imensa maioria das informações conferem ao circo um certo ar de banalidade, como se segredos de Estado não fossem lá grande coisa. E talvez não sejam mesmo. O WikiLeaks sobrevém, assim, como a vingança dos que não têm mais privacidade contra os que ainda se imaginavam controladores das privacidades dos comuns. Não há mais segredos bem guardados, nem mesmo na Casa Branca. O panóptico estilhaçou-se, caiu como a velha Bastilha. Reis e rainhas trafegam nus. Os esconderijos esfacelam-se.
Nesse meio tempo, as reações do poder - econômico e político - contra o WikiLeaks revelam uma mentalidade pateticamente totalitária. Num jogo combinado, típico de coalizões militares, as instituições financeiras internacionais fecham o cerco. Governos agem de modo análogo. Será que esse pessoal acreditava que controlava a sociedade de modo tão absoluto?
Quem acreditou nisso errou. O WikiLeaks não é um site, mas uma possibilidade da era digital que se materializou num site. Outros virão. O vazamento indiscriminado vai continuar. Outras caixas de Pandora estão para cair. Que caiam.
*Jornalista, é professor da ECA-USP e da ESPM
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