domingo, 21 de setembro de 2014

Escravidão, a poderosa empresa estatal que movia todo um país de funcionários públicos

Por Valério Fabris, jornalista em Belo Horizonte
                 

O Brasil é apaixonado por empreendimentos estatais. O maior foi a escravidão, que durou ininterruptos 335 anos, de 1533 a 1888.  Em mais de três séculos, foram embarcados para cá cerca de 5,5 milhões de africanos.  Chegaram 4,8 milhões de pessoas; 700 mil morreram nas viagens. O inexpugnável aparato escravagista blindou o país inteiro. Os olhos e ouvidos do vigilante monarca multiplicavam-se em juízes, intendentes, milicianos, conselheiros, ouvidores, proprietários de terra e padres.

A escravidão de mais de três séculos obteve apoio da larga maioria dos brasileiros; excetuavam-se umas duas dúzias de intelectuais. Os escravos padeciam silenciosamente.  No mais, por aqui, aplausos à chibata. O Brasil veio a abolir a escravidão a contragosto, em face da intensa pressão dos movimentos sociais do hemisfério norte, levados adiante por religiosos e humanistas, tendo como epicentro a Inglaterra. A mobilização da opinião pública inglesa iniciou-se em 1787. A onda espalhou-se pelas nações vizinhas, chegando ao norte dos Estados Unidos.  O fenômeno da proliferação de núcleos antiabolicionistas seria semelhante, hoje, ao dos globalizantes movimentos ambientalistas.  

As campanhas internacionais ecoaram no Brasil, animando o agrupamento de abolicionistas daqui a continuar a sua pregação.  Acusavam-se esses abolicionistas brasileiros de serem liberais e anglófilos, antipatrióticos, integristas e até mesmo de comunistas, uma vez que se opunham à propriedade privada, à posse dos escravos.  Semelhanças há entre os argumentos lançados, ontem e hoje, com o intuito de desqualificar os abolicionistas do século XIX e os ecologistas deste novo milênio: estariam a serviço do capital monopolista, que se utiliza de todos os meios com vistas ao continuado enfraquecimento das economias periféricas, tornando-as ainda mais dependentes dos países centrais. 

Os abolicionistas Joaquim Nabuco, André Rebouças, Antônio Bento, Luis Gama e José do Patrocínio, entre outros, foram tachados de antipatrióticos e subalternos ao ideário inglês.  Nabuco viu estreitar de tal modo o seu campo profissional de advogado que, pela falta de clientes, optou pelo auto-exílio na Inglaterra, em 1882.  Mesmo com a constante oposição dos abolicionistas, o empreendimento escravagista nacional avançava olimpicamente. No Brasil, a escravidão durou 109 anos a mais do que nos Estados Unidos – lá, ela começou em 1619 e acabou em 1863.   

O jeitinho brasileiro é -  usando uma frase do historiador Sergio Buarque de Holanda -  a “forma que se converteu em fórmula” de conservação do modelo estatizante, burocrático e escravagista. Com o pretexto da (ainda hoje) alegada governabilidade, na tentativa de acalmar os ingleses e a opinião pública estrangeira, o império anunciou a interrupção do tráfico negreiro, em 1883, com a Lei Eusébio de Queiroz.  Mas, o tráfico persistiu até a assinatura da Lei Áurea, em 1888, com o subterfúgio do contrabando consentido pelo império.  Assim nasceu a expressão “só para inglês ver”. 

Nabuco previu que, a despeito da abolição, o conservadorismo do poder imperial permaneceria, secularmente, como nossa matriz ideológica, baseada no tripé do centralismo, da burocracia e do empreguismo, da concentração de renda.  As escolas inexistiam pelo Brasil afora, já que não se educam escravos.  O interior do Brasil era uma vastidão de miséria. Sem dinheiro circulando, pois trabalho escravo é impagável, não florescem as atividades do comércio varejista ou atacadista, e, consequentemente, as poucas cidades de então continuavam atrofiadas na pobreza. 

O abolicionista vaticinou, ainda, que nossos corações e mentes guardariam “invencível horror a toda a espécie de trabalho” relacionada à lida dos escravos. Isto é, aos afazeres que provoquem suor na camisa. Essa pretendida leveza e assepsia aristocráticas encontraram aconchego na “empregomania” (como sublinhou Nabuco) das repartições.  Excetuando-se os escravos, os brasileiros de toda a nação buscavam empregos públicos.

Eis uma fala de Nabuco, pronunciada em 1888:  “Vós compreendeis que quem sustenta os empregados públicos são os produtores, os contribuintes: se o funcionalismo chegasse para quantos o procuram, o ordenado de cada empregado teria que sair da sua própria algibeira”. 

Ou seja, 1888 é um ano que ainda não terminou.     

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