Leia tudo sobre Victor Jara em www.elmercurio.ch, de onde tirei as principais informações datadas do que está abaixo; o resto é dessa cabeça de velho mesmo.
A Praça Brasil, no centro de Santiago, está ocupada por milhares de pessoas desde o começo desta sexta-feira. Há com intermitência silêncio e cantos. Velhos, famílias, crianças e artistas - como Angel Parra e outros músicos - gente do cinema, alunos e professores, intelectuais de todas as áreas e a ministra da cultura, Paulina Urritia.
Chamemos todos de povo.
O povo chileno, gente de Santiago e vinda de várias partes do país, acompanha o velório de Victor Jara, cantor e compositor que projetou ao mundo a música chilena e, ao morrer fuzilado, há 36 anos, lançou os olhos do mundo a sanguinária ditadura de Pinochet e seus asseclas.
Eu não gostaria, mas queria estar lá para me despedir de Victor Jara.
Victor (Víctor, com acento, no castelhano), será enterrado neste sábado no Cemitério Geral de Santiago, belíssima cidade que conheci em 1991. A visão da cordilheira é emocionante.
Victor Jara era assim, se vale a comparação, o Geraldo Vandré do Chile. Vandré, cantor e compositor de “protesto” escapou da sanha de nossos assassinos e, em 1968 (ou terá sido 1969, doutor Alois?), refugiou-se no Chile e depois na Europa (“Das terras de Benvirá” é tão seminal como esquecido pela nossa MPB).
Vandré foi salvo, pasmem, escondido no carro do – noves fora minha rala memória, em relação ao cargo – então governador Roberto de Abreu Sodré, direitaço, mas humano.
Não houve quem salvasse Victor Jara. Como outros irmãos chilenos, foi tirado de sua família, torturado e executado.
No dia 15 de setembro de 1973, Jara morreu assassinado no estádio Chile (não, não foi no estádio Nacional, o que eu também pensei durante muito tempo, e quando no Nacional me senti mal, mas lá muita gente também foi sacrificada), atingido com 44 tiros de fuzil, na cabeça, nos braços, em todo o corpo.
Quarenta e quatro tiros.
Chegou até nós, garotos de então, que ele tivera as mãos cortadas e mesmo assim continuara tocando seu violão e cantando, até ser executado. Lendas são lendas, mas seu sacrifício não foi menos cruel – e não foi menos em vão.
Entre junho e novembro, autópsias realizadas em ossadas desenterradas no cemitério geral identificaram o mais popular cantor e compositor chileno, legítimo representante de seu povo e de seus sonhos. Os exames identificaram a fuzilaria de que foi vítima. Não se sabe se lenta, o que é bem possível e é o que diziam. Um depois do outro, lentamente.
Também não se identificou a bala que o matou, mas seus assassinos, noves fora Pinochet, sim.
José Paredes Márquez, de 54 anos, foi seu executor. É confesso e comprovadamente lúcido, apontaram exames psiquiátricos.
Eu era garoto quando Victor Jara foi morto em 1973.
Márquez também.
O assassino tem a mesma idade que eu.
Tínhamos 18 anos em 1973. Certamente, ele conhecia mais do que eu sobre Victor Jara. E, como eu, já era bem crescidinho para distinguir entre o certo e o errado, mesmo pressionado.
José Paredes Márquez, hoje um senhor, deve ter dado uma de Adolf Eichmann - na sensível e sempre oportuna narração de Hannah Harendt sobre o julgamento do burocrata nazista em Jerusalém.
Neste sábado – quantos anos depois? -, Victor Jara ganhará sepultura num humano cemitério de Santiago. Quantos ganharam ou ganharão sete palmos nos cemitérios da Argentina, do Uruguai, da Bolívia, do Peru, do Paraguai, do Brasil?
A história é implacável: examina, julga e condena ou absolve. Só no Brasil essa anistia, esse esquecimento que dói em milhares de famílias – de ambos os lados, concordo, porém muito mais do lado dos perdedores -, restou como aquela mancha que vai incomodar para sempre.
O Brasil, essa pátria de panos quentes com os crimes da ditadura, com a corrupção, com o jeitinho, a malandragem, a falta de caráter, chega a ser um país patológico política e socialmente falando.
Nossos vizinhos não esquecem.
Aqui, a história, essa senhora implacável, não nos absolverá.
Tenho um LP de Victor Jara e umas coletâneas – tudo no velho e bom vinil – com ele e outros chilenos bons como o vinho, as frutas e o povo de verdade desse belo país. Ouço sempre “Te recuerdo Amanda”, uma bela canção de amor de um casal de trabalhadores (“1.º de Maio”, de Chico e Milton, fala desse amor, em outro contexto).
Por falar nisso, há muitos anos desapareceu de minha coleção de LPs – quem foi o filhodaputa?, ou será que o troquei com o querido amigo Emilson Schafron, que me deixou este ano? – um do Ivan Lins, belíssimo, em que ele toca e canta “Te Recuerdo Amanda”, com o baixo acústico, de chorar, de Paulo Russo. Quem puder, baixe da internet, que lá deve ter. Quem tiver, aceito a doação.
Victor Jara não era só o Geraldo Vandré do Chile. Era o Bob Dylan, o Neil Young, o Bruce Springsteen, o Bono, o Sting, o Kurt Weill, o Brecht, o Sérgio Ricardo, o Zé Keti, o Georges Moustaki, o Garcia Lorca, o João do Vale, o cara que rabiscou Allonsanfan, o Fernando Arrabal, o ...
Victor Jara era tudo e ainda é todos, mas basicamente era e é o Chile, era e é o Brasil.E era e sempre será essa nossa amada América Latina.
Victor Jara éramos todos nós em 1973 e eu e esse menino de 1973 chamado José Paredes Márquez.
Tenho orgulho de Victor Jara.
A José Paredes Márquez, dileto filho de Pinochet e seus oficiais, que desfechou os 44 tiros, os 44 mil tiros, o único tiro e escolheu o outro lado da história - como Eichmann, esse animal destituído de senso moral -, que matou Victor Jara, o democrata Salvador Allende, os pais, mães e irmãozinhos chilenos, meu nada.
Ou, melhor, em bom português: foda-se.
Pra encerrar, copio e colo aqui a canção mais marcante de Victor Jara.
É não apenas uma canção – é conto, romance, peça teatral, filme. Volta e meia me lembro de Amanda.
Victor Jara forévis.
Te recordo, Amanda,
A rua molhada
Correndo à fábrica
Onde trabalhava Manuel.
O sorriso largo
A chuva no cabelo
Não importava nada
Você foi ao encontro dele
Com ele, com ele, com ele, com ele.
São cinco minutos. A vida é eterna em cinco minutos.
Soa a sirene. De volta ao trabalho
E tu caminhando iluminas tudo,
Os cinco minutos te fazem florescer
Te recordo, Amanda,
A rua molhada
Correndo à fábrica
Onde trabalhava Manuel.
O sorriso largo
A chuva no cabelo
Não importava nada
Você foi ao encontro dele
Com ele, com ele, com ele, com ele.
Que partiu para a serra
Que nunca cometeu erros. Que partiu para a serra,
E em cinco minutos foi destruído
Soa a sirene, de volta ao trabalho.
Muitos não voltarão, tampouco Manuel.
Te recordo, Amanda
A rua molhada
Correndo à fábrica
Onde trabalhava Manuel.
Nenhum comentário:
Postar um comentário