Renato Janine Ribeiro, em O Estado de S. Paulo
Em milênios de filosofia, só dois filósofos quebraram as fronteiras da academia para que seus nomes gerassem adjetivos conhecidos de todos, até de quem não sabe quem eles foram: Platão e Maquiavel. Todos ouvimos falar em amor platônico ou em pessoas maquiavélicas. Não interessa que os especialistas se irritem porque Maquiavel não foi maquiavélico; o fato é que ele, como Platão, deixou uma marca no imaginário social.
O Príncipe, que em breve completará 500 anos, tem características notáveis. Primeira: é livro facílimo de ler. Segunda: apesar disso, não há acordo sobre o que quer dizer. Lemos com facilidade e não temos certeza do que ele pretende. Talvez porque, terceira característica, parece contradizer o resto da vida e obra do autor. Maquiavel foi um dos chefes da República de Florença, passou anos escrevendo uma grande obra republicana - os Discursos - mas somente se tornou um dos maiores pensadores da história devido a um livro curto que redigiu em poucas semanas, banido da cidade, com o fim de agradar aos novos senhores de uma Florença monárquica. Por isso nos perguntamos o que é O Príncipe: é um livro de apologia à monarquia ou uma sátira cáustica? Sustenta que os fins justificam os meios ou mostra a essência da política? Contradiz o político e pensador republicano ou nutre, com ele, uma secreta harmonia?
Vamos às questões principais do Príncipe. Concentro-me em duas. A primeira é a convicção de Maquiavel, segundo a qual metade - por assim dizer - do que nos sucede depende da fortuna. "Fortuna" inclui aqui o infortúnio - a sorte, o acaso, em suma, o que não está em nossas mãos. O máximo que conseguiremos, com muito empenho, será controlar a outra metade. Para isso, teremos de mostrar valor, que ele chama virtù. Usamos a palavra italiana, que significa "virtude", justamente porque é o contrário do que costumamos chamar de virtude. Sua virtù nada tem de moral. Aqui começa o problema. Enquanto estávamos só na estatística, no fifty-fifty fortuna vs. ação planejada e deliberada, tudo bem. Mas quando Maquiavel diz que, para reduzir o quinhão da fortuna, o homem tem de ser um autêntico "vir" (a palavra latina para varão, macho), ele conclui que não poderá seguir a moral cristã.
Passemos à segunda questão. Muitos, diz o autor, trataram de Estados ideais e reis justos, mas tais entes não existem ou não subsistem. Para tratar de "coisas que prestem", falará dos Estados reais e de como funcionam. Seu capítulo 15 é citado como a certidão de nascimento da ciência política: em vez de discutir como as coisas deveriam ser, pensar como realmente são. Não é fortuito que seja Fernando Henrique Cardoso - cientista político, que por coincidência já foi chamado de príncipe da nossa sociologia - quem redija o prefácio, ao qual se segue uma introdução de Antony Grafton, que tem por única falha, a meu ver, ignorar a ótima bibliografia que não foi escrita em inglês: Max Weber, Merleau-Ponty, Claude Lefort e, dos brasileiros, Newton Bignotto. De toda forma, essa tradução fluente há de concorrer com a edição, muito bem cuidada, que temos do Príncipe pela editora Martins Fontes.
Para o leitor, não haveria problema em Maquiavel afirmar que muito de nossa vida escapa a nosso controle, nem que pretenda fazer ciência e não moral. O começo de cada uma de suas duas teses é tranquilo. O que choca são as consequências. Primeira: como controlar o máximo possível de nossa vida política? Será que "os fins justificam os meios"? Consultei o Google: só em português, essa expressão aparece 16.500 vezes junto a seu nome. O curioso é que Maquiavel nunca disse isso.
Daí a segunda consequência: ele teria aconselhado os príncipes a mentir, fazer o mal, faltar à palavra, sistematicamente. Contudo, diz ele, o príncipe deve fazer o bem sempre que possível, e usar do mal só quando necessário. O que dá a Maquiavel a fama de amoral é essa dupla ressalva: não fazer o bem sempre, mas quando possível. Sua análise do poder, que é uma festa para a ciência, é uma preocupação para a moral - a tal ponto que em inglês um dos nomes do diabo, Old Nick, derivaria de seu prenome Nicolau.
Como controlar nosso destino, como reduzir o quinhão da fortuna? Não há questão mais atual. No penúltimo e vital capítulo do livro, o autor explica. Há dois tipos de homem, o cauteloso e o impetuoso. Certas épocas requerem cautela (rispetto), outras, impetuosidade. O ideal seria o homem adaptar-se à conjuntura. Este seria o homem prudente: na época se dizia que "o homem sábio (vir sapiens) dominará os astros", isto é, a fortuna. Isso se lê na medalha de Afonso V de Aragão. O "vir sapiens" é o homem prudente com virtù. Maquiavel exorta o príncipe: deve ser plástico, mutável, bom quando possível, mau se necessário, mas, sobretudo, cauteloso ou açodado conforme a ocasião. Se Cesar Borgia perdeu, foi porque não soube mudar quando os tempos assim o exigiram. O problema é que essa plasticidade do príncipe é quase impossível. Daí, um horizonte trágico: por mais que tentemos governar as circunstâncias, podemos perder.
Maquiavel está na origem da "ética do político", diferente da ética do cidadão privado, que FHC citava tanto na presidência da República e que foi teorizada por Weber. Mas o notável no pensador florentino é que, sabe ele, essa ética não é a dos resultados, a do sucesso. Pode resultar em fracasso - como no caso de Cesar Borgia. Nem por isso a política é menos nobre. Ser político não é só vencer. É saber fazê-lo com virtù - capacidade, ação deliberada e, também, uma certa honra. Talvez O Príncipe seja o mais belo elogio da política.
Renato Janine Ribeiro é filósofo, professor titular de ética e filosofia política da USP
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