Tive a honra e a tristeza de, junto com Sérgio Silva, ter feito a derradeira entrevista de Taiguara. Foi no QI na TV, da hoje RIC, poucos meses antes da morte do artista.
Pasquale Cipro Neto, na Folha de hoje.
A antológica "Elegia na Morte de Clodoaldo Pereira da Silva Moraes", de Vinicius de Moraes, começa assim: "A morte chegou pelo interurbano (...). Era de madrugada. Ouvi a voz de minha mãe, viúva. De repente, não tinha pai. No escuro de minha casa em Los Angeles...".
O diplomata Vinicius de Moraes servia nos Estados Unidos quando seu pai morreu. Se você não conhece essa "Elegia", trate de conhecer. Basta entrar no belíssimo site de Vinicius e ler. E chorar. Chorar muito. Nas artes, Vinicius é um dos meus tantos "pais". Sinto-me "órfão" dele, assim como me sinto órfão de Drummond e de outros tantos.
Na música popular, também tenho os meus "pais", muitos dos quais os leitores conhecem bem. Mas um deles talvez eu tenha citado poucas vezes ao longo dos anos. Refiro-me a Taiguara, que morreu em 14 de fevereiro de 1996, ou seja, há quinze anos. Eu estava em Portugal e, como Vinicius, recebi a notícia fúnebre pelo telefone. Imediatamente me senti, mais uma vez, "órfão" de um poeta sensível e refinado.
Na hora, lembrei-me de uma conversa com um querido amigo dos tempos de colégio, o hoje jornalista Delamar da Cruz, sobre uma cena que presenciamos em nossa adolescência. Em plena Copa de 70, com a ditadura e a lavagem cerebral a mil, a multidão se reunia nas ruas, na praça da Sé ou em frente ao teatro Municipal, para ouvir os jogos. Já havia TV direta, mas não havia telões. Nas ruas, o negócio era mesmo o rádio. Enquanto o jogo não começava, música. E Taiguara, dizendo em sua antológica "Hoje": "Hoje / As minhas mãos enfraquecidas e vazias / Procuram nuas pelas luas, pelas ruas... / Na solidão das noites frias por você (...) Hoje / Homens de aço esperam da ciência / Eu desespero e abraço a tua ausência / Que é o que me resta vivo em minha sorte".
Imagine o contraste entre o frenesi do povo e o sentido da letra de Taiguara... O caro leitor notou como o poeta trabalha o par verbal "esperam/desespero"? Por favor, leia "desespéro" (é verbo). Notou que, em "eu desespero", Taiguara emprega o verbo com o sentido de "perder a esperança"? Na letra, esse verbo pode ser tomado como transitivo indireto, com objeto indireto subentendido ("eu desespero da ciência") ou simplesmente como intransitivo ("eu desespero", com o sentido seco de "perco a esperança").
Taiguara era nobreza pura. Em outra obra-prima, "Maria do Futuro", diz ele: "Nessa rede ela prendeu / Minha dor civil, minha solidão. / Nessa rede eu vi nascer minha liberdade (...) E em cadeias de amor puro / viver guardado / Joga areias do futuro no meu passado". Maravilha! Que beleza a aparente antítese "rede/liberdade"! Que bela noção de liberdade cria o jogo rede/cadeias/areias (do futuro no meu passado)! Bem, para muita gente não é tão fácil assim captar o que é a verdadeira liberdade, sobretudo quando ela vem por imagens poéticas...
Encerro esta lembrança de Taiguara com versos de uma de suas antológicas canções, cujo nome é o título desta coluna: "Vê como um fogo brando funde um ferro duro / Vê como o asfalto é teu jardim se você crê / Que há um sol nascente avermelhando o céu escuro / Chamando os homens pro seu tempo de viver / E que as crianças cantem livres sobre os muros / E ensinem sonho ao que não pôde amar sem dor...".
Os muros a que se refere Taiguara são muitos, mas são sobretudo os metafóricos muros das barreiras que separam as trevas da luz, a mediocridade da criatividade, a teimosia da abertura mental e psíquica, separam a inércia do movimento para a frente, para o novo, para a revisão do velho conceito. Onde estiver, um beijo, caro Taiguara. É isso.
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