Sérgio Besserman presidiu o IBGE, é irmão do falecido Bussunda (só pra constar) e intelectual atento à questão urbana. A entrevista a seguir, retirada de Veja desta semana, é oportuna e muito importante para quem vê o Estado banana, leniente, preguiçoso. Sua análise vale para as favelas curitibanas, onde o Estado coloca alguns benefícios, mas não ataca o problema. Não podemos conviver com um Estadinho dentro do Estado. É a oficialização da desigualdade. A leitura é instigante.
Poucos especialistas falam com tanta autoridade sobre a favelização nas metrópoles brasileiras quanto o economista carioca Sérgio Besserman, 52 anos. As últimas estatísticas disponíveis sobre as favelas no país foram produzidas sob sua gestão (1999-2002) como presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Suas opiniões sobre o assunto dão aquele banho de racionalidade que costuma desconcertar o senso comum. Besserman sustenta que retirar os barracos dos morros no Rio de Janeiro é uma solução que, se implementada, vai trazer ganhos econômicos e sociais para toda a população. Diz ele: "A questão precisa ser discutida com rigor lógico, a salvo das influências de ideologias e do romantismo".
A prefeitura e o governo do estado do Rio de Janeiro começaram, na semana passada, a retirar barracos de áreas de risco. Por que nenhum governante fez isso a tempo de evitar tragédias?
Por um misto de incompetência e demagogia. No Rio de Janeiro, a remoção de favelas passou a ser um grande tabu, sustentado por um assistencialismo barato segundo o qual o estado deve prover tudo aos pobres dos morros - ainda que sua permanência ali possa pôr a própria vida em risco e acarretar prejuízos à cidade como um todo. A ideia absurda embutida nesse raciocínio é a de que quem vive em favela é um cidadão especial, que não precisa se submeter nem à Constituição e não tem os mesmos deveres dos outros brasileiros. Sob essa ótica obtusa, remover favelas é visto como uma afronta aos direitos dos mais necessitados. Essa bobagem demagógica tem suas raízes no populismo que há décadas contamina a política fluminense. O inchaço das favelas do Rio é resultado da combinação desses fatores.
Como o populismo contribuiu para a proliferação das favelas?
Historicamente, ele foi a mola propulsora das favelas fluminenses, tendo como seu principal expoente o governador Leonel Brizola, na década de 80, quando se chegou ao auge de proibir a entrada de policiais nas favelas. O resultado foi um surto de ocupações irregulares. Sem polícia, foi dado o sinal verde para o banditismo. Sob o pretexto absurdo de que havia uma dívida social a ser quitada, foram concedidos aos moradores das favelas direitos inacessíveis aos demais brasileiros pobres ou ricos. Enquanto isso, os populistas iam esparramando nos morros seus currais eleitorais, ganhando votos em troca de tijolos, cimento, dentaduras e bicas-d’água. Isso explica a perpetuação dessa classe de políticos em uma sociedade que se pretende moderna. Eles e as favelas estão aí como símbolos do atraso. Quando alguém fala em remoção de barracos, são justamente eles os primeiros a levantar a voz contra. Claro, não querem perder seus currais eleitorais.
A quem mais interessam a perpetuação e o crescimento das favelas no Rio?
Os políticos são apenas os tentáculos mais visíveis de uma enorme rede de ilegalidades que sustenta milhares de pessoas. Prospera no Rio de Janeiro uma indústria da favelização. No braço imobiliário há, de um lado, os grileiros, que invadem terrenos para vender depois, e, do outro, pessoas de fora das favelas que constroem barracos e os alugam. Os bandidos dominam a vida nas favelas. Eles controlam o comércio de botijões de gás e vendem acessos clandestinos às redes de TV a cabo. Os bandidos cobram até uma taxa a título de oferecer proteção aos moradores. É grande, portanto, o grupo dos que lucram com a existência das favelas. Infelizmente, aos poucos a sociedade foi deixando de se espantar com essa aberração urbana, a despeito das atrocidades cometidas a toda hora em plena luz do dia por um estado paralelo.
Por que a aberração foi assimilada?
Isso se deve, em boa medida, a uma visão romântica e evidentemente deturpada sobre as favelas, que começou a ser propagada por parte da esquerda ainda nos anos 70. Essa corrente passou a difundir a ideia de que a convivência entre a cidade formal e o mundo da ilegalidade não apenas era aceitável como deveria ser pacífica. Acabou resultando numa glamourização da bandidagem. Nessa ótica distorcida, criminosos são tratados como líderes populares e toda e qualquer favela ganha apelido de comunidade, ainda que as pessoas vivam ali sob o jugo dos bandidos e à margem da lei. Isso tudo fez do Rio de Janeiro um péssimo exemplo de tolerância e benevolência com o mundo do crime no Brasil. Também não ajudou a combater o surgimento das favelas. Ao contrário: do ponto de vista cultural, só lhes deu legitimidade.
Como reverter a situação em um cenário em que a população das favelas cresce até quatro vezes mais rapidamente do que a da cidade como um todo?
É preciso fazer primeiro o básico do básico: o estado deve recuperar o monopólio da força nos territórios hoje dominados pelos bandidos. As favelas são lugares em que milhões de pessoas vivem sob outras leis que não a do estado de direito democrático. Na prática, elas não estão sob a órbita da Constituição brasileira. Essa ausência de poder público é um padrão que se dissemina também por outras regiões metropolitanas do Brasil, como São Paulo e Brasília - mas em nenhum outro lugar do país o estado deixou tamanho vácuo. Não é viável almejar uma democracia digna e condizente com os avanços do século XXI sem equacionar essa grande anomalia. O estado moderno surgiu, afinal, para garantir a segurança e a paz social. É justamente o oposto da brutalidade que grassa nas favelas do Rio.
O senhor considera a experiência das Unidades de Polícia Pacificadora nas favelas cariocas (em que os traficantes são expulsos e a polícia passa a ocupar permanentemente os morros) uma maneira eficaz de o estado retomar o controle dos territórios em questão?
Diria que o princípio não apenas é acertado como, daqui para a frente, o estado não tem mais o direito de retroceder dessa iniciativa. Finalmente, as autoridades entraram em algumas favelas e retomaram o poder, primeiro passo de um processo civilizatório que precisa continuar.
Por que a remoção de barracos é uma solução?
Em contradição com a opinião dominante, acho que há muitos casos em que a remoção se justifica. Antes de tudo, é preciso começar a tratar essa questão com a objetividade que ela requer, longe da sombra da ideologia e dos interesses escusos. Não há como discordar da ideia de que alguém que tenha seu barraco fincado sobre os restos de um antigo lixão, como é o caso de dezoito favelas no Rio, deve ser retirado imediatamente de lá. O mesmo vale para quem tem a casa espetada à beira de um precipício, em flagrante situação de risco. Até aí, prevalece um relativo consenso. No entanto é preciso ir além, encarando uma questão de fundo econômico que é central mas foi posta de lado no debate: as áreas favelizadas provocam uma acentuada degradação da paisagem da cidade, um ativo cujo valor é incalculável. Portanto, quando uma análise de custo-benefício revelar que a realocação de uma favela trará retorno financeiro e social elevado, por que razões não cogitar sua remoção?
Como exatamente a economia da cidade se beneficia de uma remoção?
A Lagoa Rodrigo de Freitas, cartão-postal da Zona Sul carioca, é um caso emblemático dos aspectos positivos que podem se seguir a uma remoção. Quando uma favela foi retirada dali, em 1970, os imóveis da região, cujos valores vinham sendo depreciados, inverteram a curva e passaram a se valorizar, aumentando a riqueza do bairro e da cidade, em benefício de todos. A riqueza é destruída no mesmo ritmo em que a favelização se alastra. Os mais pobres também perdem quando a riqueza deixa de ser criada ou é destruída. Os mais pobres são sempre os mais vulneráveis economicamente. Não tenho dúvida de que a política de remoção de favelas, que muitos ideólogos por aí definem como elitista, pode ser inclusiva, proporcionando mais benefícios do que prejuízos à maioria. O discurso da não remoção é um discurso antipobre.
Por que o estado chegou tão perto de remover certas favelas do Rio, mas acabou voltando atrás?
Além de toda aquela gente que se beneficia da indústria da favelização e faz pressão contra, a ação de pessoas bem-intencionadas também atrapalhou. Veja o que aconteceu no Morro Dona Marta, em Botafogo, outro endereço valorizado da Zona Sul. Na década de 60, quando ali havia uns poucos barracos, o governo anunciou que faria a remoção. Mas setores ligados à Igreja, sob a liderança do então bispo auxiliar do Rio, Dom Helder Câmara, se insurgiram. O resultado foi previsível. A resistência incentivou a vinda de mais e mais moradores, e o Rio perdeu mais uma vez.
O que fazer no caso daqueles morros que já atingiram dezenas de milhares de habitantes, como a Rocinha?
Feitas as contas, existe um consenso de que é muito mais simples e barato urbanizar essas favelas do que removê-las. A ideia central não é apenas prover os serviços nos moldes do velho assistencialismo, mas cobrar por eles, o que é natural com a inclusão dessas pessoas na economia formal da cidade. É preciso ter em mente que 1,3 milhão de habitantes do Rio pertencem ao mundo informal dos morros - o que representa um de cada cinco moradores. A entrada desse contingente na economia formal teria efeito muito positivo para a cidade. Isso depende da implantação de uma política habitacional séria, área em que os governos brasileiros em todos os níveis são tradicionalmente omissos.
Há algum sinal de melhora nesse cenário?
Do ponto de vista das políticas públicas, não houve nenhuma novidade relevante nos últimos anos. Mas é preciso reconhecer que o atual ambiente macroeconômico aumenta as chances de avanço. A começar pelo fato de que não existe mais aquele cenário de inflação galopante, que inviabilizava o acesso ao crédito imobiliário para todos os estratos de renda. Habitação é o tipo de demanda que não pode ficar insatisfeita: se o governo não tem uma boa política, as pessoas dão o seu jeito, como tem ocorrido nas favelas brasileiras desde a década de 50. Instalar-se nelas pode até ter sido uma solução boa individualmente para quem não tinha um teto sob o qual morar - mas para as grandes cidades em todo o país significou um verdadeiro desastre.
Como mensurar isso?
A experiência internacional mostra - e o caso brasileiro confirma - que a presença maciça de favelas afeta o ambiente de negócios e faz reduzir as chances de uma cidade competir globalmente. Está comprovado que um cartão-postal degradado e grandes áreas tomadas pela informalidade e pela violência são fatores decisivos para prejudicar a dinâmica econômica e afugentar investidores. Olhe o que está acontecendo no México, onde os cartéis da droga passaram a controlar grandes territórios e se tornaram um dos principais obstáculos ao aumento da competitividade do país. O Brasil ainda não chegou a esse ponto, mas caminhará para isso se não der fim ao controle territorial exercido por bandidos nas regiões metropolitanas.
Há perspectivas de que as favelas deixem de existir a longo prazo?
Para mim, a melhor de todas as definições de favela é a que a descreve como um território à margem das leis que regem o restante da cidade. Elas começarão a deixar de ser favelas quando o estado se livrar de seus vícios populistas paralisantes e derrotar a bandidagem que exerce poder efetivo sobre o cotidiano de milhões de brasileiros.
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