sábado, 29 de maio de 2010

A neve do almirante - Alvaro Mutis

Há muitos anos, ganhei de meu amigo Zoilo Martinez, que hoje vive em Madri, a obra principal de Alvaro Mutis (jornalista, poeta, romancista e tal), suas Sete Novelas. Trata-se de um escritor colombiano do nível de Garcia Marquez - espero que vivos, ainda e forévis.
Meti-me - como dizem na língua espanhola - a traduzi-la, acreditando que não havia versão em português. Descobri depois que havia (não me recordo de quem).
Jodi-me.
Parei, não só por isso, mas por falta de tempo, paciência e tal. Pretendo retomar a obra e, um belo dia, editá-la-ei às minhas próprias custas S.A.
Tava bacana.
O original, Mutis, claro, é perfeito.
Pra quem quiser saber, Mutis é mais escrevedor do que Marquez (jornalista editaria, cortaria e tal), mas é um gênio.
Um dia termino. Serei o Houassis dos pobres.
Eric Nepomuceno, tradutor de Garcia Marquez, falava (não sei se por telefone, carta ou etc.) sobre tal palavra, tal termo, tal colocação, e o mestre respondia:
"Você tem um dicionário? Vai traduzindo."
Foi o que fiz com Alvaro Mutis - sem falar com ele -, com o cuidado de checar e tomar xeque do dicionário de espanhol (a língua nobre e oficial, a castelhana, de Castela, óbvio) da Real Academia Espanhola.
Eis o comecinho, só o comecinho.
Se alguém curtir, continuo a publicar. Se dois gostarem, volto à tradução.
Depois cumpro os parágrafos. Estou sem paciência e este copia e tal não os respeita.
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Sete Novelas
Empresas e
Atribulações de
Maqroll, o Gavieiro


Alvaro Mutis




A Neve do Almirante


A Ernesto Volkening
(Amberes, 1908 – Bogotá, 1983)
Em recordação e homenagem
à sua amizade sem sombras,
à sua lição inesquecível.






Quando acreditava que havia passado por minhas mãos a totalidade dos escritos, cartas, documentos, relatos e memórias de Maqroll, o Gavieiro, e que quem sabia de meu interesse pelas coisas da vida dele havia esgotado a busca de sinais escritos de sua desastrada errância, ainda reservava o azar uma bem curiosa surpresa, quando menos se esperava.
Um dos prazeres secretos com que me deparo ao passear pelo Bairro Gótico de Barcelona é visitar seus sebos de livros, para mim os melhor abastecidos e cujos donos ainda conservam essas sutis habilidades, essas intenções gratificantes, esse saber malicioso, reservado e de poucas palavras que são virtudes do autêntico livreiro, espécie em vias de iminente extinção. Outro dia me internei na rua de Botillers, e nela me atraiu a vitrine de uma antiga livraria, que está fechada a maior parte do tempo e oferece à avidez do colecionador peças realmente excepcionais. Nesse dia estava aberta. Entrei como se ungido, como se entra no santuário de algum rito esquecido. Um jovem de espessa barba negra de judeu levantino, tez de marfim e olhos aquosos, negros, detidos numa leve expressão de assombro, atendia detrás de um montão de livros em desordem e de mapas que catalogava com uma minuciosa letra de outros tempos. Sorriu-me ligeiramente e, como bom livreiro de tradição, deixou-me percorrer as estantes, tratando de se manter o mais inadvertido (DISTRAÍDO?) possível. Quando separava alguns livros que me propunha a comprar, encontrei-me de repente com uma bela edição, encadernada em púrpura, do livro de P. Raymond que buscava fazia anos e cujo título é por si toda uma promessa: “Enquête du Prévôt de Paris sur l’assassinat de Louis Duc D’Orleans”, editado pela Bibliothèque de Lécole de Chartres, em 1865. Muitos anos de espera eram assim recompensados por um golpe de sorte sobre o que tempos atrás já não me trazia mais ilusões. Peguei o exemplar sem abri-lo e perguntei ao jovem barbudo quanto custava. Ele respondeu citando a cifra com um tom rotundo, definitivo e inapelável, também próprio de sua altiva confraria. Paguei sem vacilar, junto com os outros livros que escolhera, e saí para gozar a sós minha aquisição, com lenta e saboreada volúpia, num banco da pracinha onde está a estátua de Berenguer, o Grande. Ao passar as páginas notei que na contracapa havia uma ampla bolsa destinada a guardar originalmente mapas e quadros genealógicos que complementavam o saboroso texto do professor Raymond. Ali encontrei um maço de folhas, a maioria de cor rosa, amarelo ou azul-celeste, com aspecto de faturas comerciais e de papéis contábeis. Ao observá-las mais atentamente, notei que estavam cobertas com uma letra miúda, um tanto trêmula, febril, diria eu, traçada com lápis de cor roxo, de vez em quando molhado com saliva pelo autor dos apertados garranchos. As folhas estavam escritas dos dois lados, com o autor evitando o impresso originalmente e que comprovei tratar-se, com efeito, de formas diversas de papelaria comercial. De repente, uma frase saltou-me à vista e me fez esquecer a escrupulosa investigação do escritor francês sobre o ingnominioso assassinato do irmão de Carlos VI da França, ordenado por João Sem Medo, Duque de Borgonha. Ao final da última página, lia-se, em tinta verde e em letra um pouco mais firme: “Escrito por Maqroll, o Gavieiro, durante sua viagem de subida pelo Rio Xurandó. Para entregar a Flor Estévez, onde se encontre. Hotel de Flandres, Antuérpia.” Como o livro tinha numerosos sublinhados e notas grafadas com o mesmo lápis, era fácil deduzir que nosso homem, para não perder essas páginas, preferiu guardá-las na bolsa da contracapa, destinada a fins um tanto mais transcendentes e acadêmicos.
Enquanto as pombas seguiam manchando a nobre estampa do conquistador de Mallorca e genro de El Cid, comecei a ler os amarrotados papéis onde, em forma de diário, o Gaveeiro narrava suas desventuras, recordações, reflexões, sonhos e fantasias, enquanto remontava a corrente de um rio, entre os muitos que vêm da serra para se perder na penumbra vegetal da selva imensurável. Muita coisa estava escrita em letra mais firme, de onde era fácil deduzir que a vibração do motor da embarcação que levava o Gaveeiro era a culpada por esse tremor que, em princípio, atribuí às febres, que nesses climas são tão freqüentes como rebeldes a todo medicamento ou cura.
Este Diário do Gaveeiro, assim como tantas outras coisas que ele deixou escritas como testemunho de seu encontrado destino, é uma mescla indefinível dos mais diversos gêneros: vai desde a narração intranscendente de feitos cotidianos até a enumeração de herméticos preceitos do que acreditava dever ser sua filosofia de vida. Tentar organizar as páginas teria sido ingênua presunção, e bem pouco se ganharia em favor de seu propósito original de consignar, dia a dia, suas experiências nessa viagem, de cuja monotonia e inutilidade talvez tenha distraído seu trabalho de cronista.
Parece-me, de outra parte, de elementar eqüidade que este diário leve como título o nome do local onde por mais tempo Maqroll desfrutou de uma relativa calma e dos cuidados de Flor Estévez, a dona do lugar e a mulher que melhor o soube entender e com quem compartilhou a exorbitante dimensão de seus sonhos e o árduo emaranhado de sua existência.
Também me ocorre que poderia interessar aos leitores do Diário do Gaveeiro ter ao seu alcance algumas outras notícias de Maqroll, relacionadas, de uma ou outra forma, com feitos e pessoas aos quais se refere em seu Diário. Por essa razão, reuni ao final do volume algumas crônicas sobre nosso personagem, surgidas em publicações anteriores e que aqui me parecem ocupar o lugar que na verdade lhes corresponde.

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